No centro é que está a
virtude? é o título de
um excelente artigo de opinião que Catarina Martins assina no público de hoje e
que transcrevemos a seguir.
Tendo
como pano de fundo a eleição de Trump para a presidência dos EUA, obviamente, a
nossa camarada conclui pela negativa em relação à existência de alguma virtude no
centro político, uma vez que “o centro tornou-se neoliberal há muito
e a social-democracia da Terceira Via é, mais do que sua companheira de
circunstância, militante da mesma causa”. Por isso
mesmo, conclui Catarina Martins que “a esquerda que vai contar é a
que sabe onde está o seu combate e a sua gente, que sabe buscar as alianças
internacionais para se erguer como alternativa e que sabe dar passos firmes”.
Uma sirene estridente ecoa pelo
mundo: é o alerta sobre a rápida marcha do populismo. Os primeiros sinais foram
a desastrada aventura referendária de Cameron, com o “Brexit”; logo depois, a
vitória de Trump, em que ninguém queria acreditar, porque não parecia
concebível. Em poucas semanas, a União Europeia descobriu-se sem destino e os
Estados Unidos entregues a um milionário que se vangloria de não pagar impostos
e é festejado por supremacistas bancos e antissemitas. Ficamos surpresos e, no
entanto, sabemos que vivemos um tempo em que tudo o que é sólido se pode
dissolver no ar. Preparemo-nos então para sustos e terramotos já ao virar da
esquina: a curto prazo, a extrema-direita pode ganhar as eleições na Áustria; o
plebiscito de Renzi, em Itália, pode virar-se contra ele e deitar abaixo a
união monetária; a França pode reduzir-se a ser uma disputa entre uma direita
radical e a extrema-direita; o Governo da Alemanha, que pouco mais reconhece do
que o bastão e a finança, vai-se perdendo no labirinto da sua relutância
europeia.
É então o populismo uma ameaça?
A democracia vive as suas vésperas dos anos 30? Pode o centro, um dia
apresentado como “centro vital” e condição da democracia, sobreviver à sua
decrepitude e recompor o mundo? Deve a esquerda vergar-se à virtude do centro? É
isso que quero discutir com as e os leitores do PÚBLICO.
As eleições norte-americanas
A esquerda norte-americana esperava
muito pouco destas presidenciais. Com o afastamento de Bernie Sanders nas
primárias do Partido Democrático, ficou descartada qualquer hipótese de um
candidato que mobilizasse jovens e transportasse a esperança de redução da
desigualdade. Sobrou uma candidata cujo argumento fundamental era a sua vez na
sucessão dinástica, contra um milionário que humilha trabalhadores, que promove
o racismo, um fanfarrão misógino que incita ao ódio, um político irresponsável
que mobiliza os negacionismos, desde os fundamentalistas que recusam Darwin em
nome da lenda de Adão e Eva até aos especuladores fósseis que rejeitam as
evidências científicas sobre as alterações do clima.
Ainda assim, Hillary Clinton teve quase
dois milhões de votos a mais do que Donald Trump, como seria de esperar. Mas
Trump ganhou mais estados e, com o sistema eleitoral norte-americano, será
Presidente. Sobretudo, Trump ganhou os estados que tradicionalmente os
republicanos ganham, mas ganhou ainda estados onde os democratas ganhavam desde
1992. São os estados conhecidos como “cintura do carvão” e, se olharmos para o
que aconteceu aqui, compreendemos o que aconteceu nestas eleições: os
trabalhadores brancos mais pobres votaram na política do medo, porque têm medo
e foram eles que viraram as eleições, dando uma vantagem de 70-30 para Trump
nesse grupo social. São as vítimas da globalização, são aqueles desempregados
da paisagem de Flint, onde Michael Moore filmava a desolação da indústria
perdida e onde agora se pagou o preço da incerteza.
Seria ocioso ver Trump como uma
desconhecida força do mal. A esquerda conhece esta força como ninguém, pois
combate-a há décadas. A xenofobia contra o imigrantes, o machismo e a
homofobia, o discurso fanático e o fundamentalismo religioso, como o
preconceito contra os direitos do trabalho ou dos pensionistas, não nasceram
hoje, já votaram e até ganharam algumas vezes. Reconheçamos de novo que essas
forças estão longe de ter desaparecido (alguém acreditava nisso? Com o desprezo
do trabalho? Com a menorização da juventude? Com a violência quotidiana contra
mulheres, negros, homossexuais?). Então, para perceber porque venceram desta
vez, recordemos Bill Clinton em 1992: “It’s the economy, stupid.” Foi
mais uma vez a economia que decidiu as eleições, porque foi nas suas falhas,
nas suas promessas e nas suas mentiras que se alimentaram as desconfianças e os
ódios que formaram a onda que Trump surfou. E é só na economia, portanto na
vida das e dos de baixo, que se pode recompor uma corrente alternativa à
trumpificação da política mundial.
Trumpizar a direita e o centro?
Perante a eleição de Trump, tem havido
duas respostas que são tentações suicidas. A primeira é a normalização da
figura e do seu programa, na ingénua convicção de que, eleito o Presidente, o
poder acaba por trazer a razão, como se a Casa Branca inoculasse os seus
ocupantes com doses de benevolência e sensatez. Ora, a normalização choca com a
realidade de cada dia: Trump começou logo por celebrar com autocratas e chefes
xenófobos, escolhendo o abraço da extrema--direita xenófoba britânica e
francesa. Pode perguntar-se se não é pura ignorância, se não percebe que Teresa
May, primeira-ministra britânica, lhe é muito mais confortável do que um Nigel
Farage sem poder efetivo e perdido no seu labirinto. Mas o pior sinal, porque
mais consequente, é a instalação nos cargos de confiança do submundo de
rotundos reacionários, de herdeiros do KKK a partidários de guerras raciais.
Trump é mesmo o que parece.
Esta primeira tentação, a da normalização,
tem ainda uma variante curiosa. Trump vai fazer o correto mesmo que pelas
razões erradas, dado que será um keynesiano promotor do crescimento com grandes
investimentos públicos, justamente do que o mundo precisa como pão para a boca.
Ora, o seu programa económico é de facto paradoxal, mas isso nem se estranha em
alguém que tranquilamente diz tudo e o seu contrário. Mas acalmem-se os
trumpólogos otimistas: nem a maioria republicana no Congresso facilita jogos
deficitários, para além da ansiada redução de impostos para os milionários, nem
as velhas soluções de construção de pontes resolvem a estagnação em que o mundo
foi mergulhado pela pirataria financeira.
Trump é mesmo isso: um radical
neoliberal que usa o protecionismo como instrumento imperialista, ao mesmo
tempo que protege a liberalização e a circulação de capitais sem regulação com
uma combinação feroz de autoritarismo, conservadorismo e fronteiras do ódio.
Uma nova
Guerra Fria
A segunda tentação é a trumpização do
próprio centro. Esta resposta defensiva recorre à palavra mágica: populismo. Em
resumo, a desagregação política resultante da financeirização e da crise
mundial seria apenas fruto de um cerco à democracia feito pelos “inimigos da
globalização”, os famosos populistas. Portanto, a solução é continuar, mais do
mesmo, correr em frente — ou seja, continuar a fazer exatamente o que tem
garantido a fortuna e a sorte dos Trumps deste mundo.
É tarde de mais para que seja o centro a
salvar-nos. O centro tornou-se neoliberal há muito e a social-democracia da
Terceira Via é, mais do que sua companheira de circunstância, militante da
mesma causa. Nas suas incursões guerreiras (lembra-se de Blair?) ou na sua
promoção da finança como lei do mundo (o euro e o Tratado Orçamental),
aceitaram deixar agonizar os regimes democráticos, que agora são impotentes
para tomar decisões. Numa terra em que quem tem o poder real não tem
legitimidade, a consequência, está bem de ver, é que a política se desmorona e
por isso o trumpismo é a forma da nova direita, é o tempo dos aventureiros.
Invocar o perigo “populista” para
defender a última virtude do centro é por isso um argumento de desespero a
evitar a todo o custo. Historicamente, o centro cedeu sempre ao populismo: a
República de Weimar entregou o poder a Hitler sem laivo de resistência. Mais,
ao tentar exorcizar agora o perigo que alimentou, o centro repete o erro de
usar o “populismo” para criar uma nova Guerra Fria. Foi assim na primeira
Guerra Fria, cujo argumento irmanava fascismo e comunismo como um “populismo”
insano. Esta amálgama grotesca entre os que começaram a II Guerra Mundial e os
que salvaram a Europa servia um propósito: normalizar uma política contra o
movimento operário e selar um pacto secular para a alternância, com políticas
que se foram afunilando no neoliberalismo, nas privatizações, na precarização
do trabalho, na degradação do Estado social nos países mais desenvolvidos — na
criação da desigualdade que cria o medo.
A invocação atual do “populismo” por partidos que albergam os
populistas (Sarkozy, Berlusconi, Orban, tão amigos que eles são do PSD e CDS,
Erdogan tão amigo da NATO, etc.) é só um manto para cobrir a sua
responsabilidade. Este nevoeiro ideológico recusa a crítica da injustiça
económica, a exigência da solidariedade para com os refugiados e a resposta
ecologista à crise climática, rotulando estas propostas como “discursos
populistas” e “aliados objetivos” da barbárie — porque recusam a globalização
realmente existente, essa sim, a causa da barbárie. Tal exercício, potenciado
após a vitória do “Brexit”, tem tido espantosas declinações desde o terramoto
Trump.
O facto é que a economia liberal fez a sua função: reforçou a
oligarquia e blindou o seu poder. Traem-se as escolhas democratas com os
tratados internacionais (e europeus) e os acordos mais ou menos secretos entre
cúpulas, nega-se a soberania ao povo e permite-se a mais desbragada impunidade
ao poder da finança. Há pouco, um dos maiores bancos mundiais, o HSBC, foi
condenado a uma multa de 2 mil milhões de dólares por ter lavado dinheiro de
cartéis da droga mexicanos. Não se pergunte se algum diretor foi julgado e
condenado pelo crime que reconheceram. Afinal, há uma lei especial para os
oligarcas. No ano passado, Portugal teve a sorte de contar com mais 1339
milionários. Mas como não há investimento, só podemos adivinhar de onde vem o
dinheiro. Entretanto, o povo pode constatar que há cinco mil milhões para o
BES, mas que é um cabo dos trabalhos obter 200 milhões para pensões miseráveis.
E os oligarcas talvez nem se apercebam da imagem de ganância que promovem.
Este é o problema. A democracia é a luta contra a desigualdade e
contra esta ganância e impunidade destruidora, a voragem da oligarquia.
Deixámo-la ganhar um poder imenso e o desespero de quem sofre permite agora
todos os demagogos. Só os venceremos se os vencermos na economia, porque é a
lei da vida.
Portanto, temos de escolher. Ou continuamos a
globalização e a lei dos mercados e teremos Trump, Fillon ou Le Pen, Putin e
Jinping, a Goldman Sachs e os cartéis da finança. Ou conquistamos uma economia
dos bens comuns e teremos democracia. A esquerda que vai contar é a que sabe
onde está o seu combate e a sua gente, que sabe buscar as alianças
internacionais para se erguer como alternativa e que sabe dar passos firmes.
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