Devemo-nos
preparar para a evidência de que “o tempo em que vivemos até aqui acabou”.
Estamos perante uma espécie de mancha de óleo que está rapidamente a alastrar
por todo o mundo e que o pode transformar num inferno onde as ditaduras se
diferenciem umas das outras apenas pelo grau de violência que exercem sobre as
populações.
O
sinal mais recente e aterrorizador acaba de nos chegar dos Estados Unidos com a
eleição de Trump. É a pátria da democracia a eleger para presidente um notório
fascista, como se pode comprovar pela identificação que vários dirigentes da
extrema-direita mundial fizeram questão de demonstrar.
O
texto seguinte constitui mais uma análise sobre “os receios” que passaram a
pairar sobre o mundo de hoje, com a garantia da lucidez de Vicente Jorge Silva.
Afinal,
os piores receios concretizaram-se. «O sinal alarmante da degradação da
democracia na América», que referi numa crónica anterior sobre a
campanha presidencial, esse «grau zero da democracia» representado pelo perigo
da eleição de Trump, passou do campo das especulações para o domínio dos
factos.
O
mítico sonho americano, obsessivamente perseguido desde a fundação do país e no
qual se reviam povos de todos os quadrantes, converteu-se em pesadelo. Um
pesadelo do qual o mundo se encontra suspenso desde a passada terça-feira,
impulsionando vertiginosamente «as tentações populistas e autoritárias mais
irracionais» que «se multiplicam um pouco por toda a parte» (como escrevi
noutra passagem dessa crónica). Não há extremista político, populista
isolacionista, ditador ou candidato a ditador que não se encontre reconfortado
com a vitória de Trump.
As
tentativas de desdramatização desse pesadelo ou de interpretá-lo racionalmente
vêm-se multiplicando, como se aquilo que aconteceu não reflectisse a perigosa e
contagiante esquizofrenia revelada pelo eleitorado americano. Afinal, muitos
daqueles que não souberam prever o que acabou por acontecer – como eu também
não soube, embora tenha apontado o perfil sombrio da candidatura de Hillary
Clinton – entregam-se agora a uma espécie de masoquismo explicativo sobre as
razões do fenómeno, rendendo-se acriticamente à legitimidade popular e
democrática da vitória de Trump (apesar das distorções inerentes ao sistema
anacrónico dos ‘grandes eleitores’ e de a maioria dos sufrágios ter sido
conquistada por Clinton, conforme sucedera com Al Gore contra George W. Bush).
Ora, quantos ditadores – incluindo Hitler ou Mussolini – subiram ao poder
legitimados pelo voto popular, como ainda há pouco vimos com o sinistro
Duterte, nas Filipinas?
A
cólera dos excluídos e marginalizados pelo ‘sistema’ e pela globalização, a
raiva contra as elites políticas, mediáticas e financeiras, o ressentimento
agressivo da ‘maioria silenciosa’ e da ‘América profunda’, a reconhecida
impopularidade de Clinton – mas sem esquecer também a de Trump, antes
considerado inapto por uma grande maioria de americanos para o cargo de
Presidente – são agora apontados como motivos decisivos da eleição do
multimilionário, com um longo e conhecido percurso de falências e fuga ao
fisco, para a chefia da Casa Branca.
Ora,
por mais cólera, raiva e ressentimento que existissem – e, pelos vistos,
existiam –, não parece possível explicar racionalmente que um perigoso mitómano
de uma boçalidade tão grotesca, com um discurso impregnado de insultos, ódio,
xenofobia e apelo aos mais baixos instintos humanos, recusando as evidências
científicas mais elementares, que deveria suscitar incredulidade junto de
qualquer pessoa provida do mínimo senso comum, tenha conseguido tornar-se o
homem mais poderoso do Ocidente – e até, para já, do mundo. Afinal, quanto mais
Trump levava aos extremos a sua retórica, mais os seus apoiantes se
identificavam com ele.
As manifestações de
civilidade que se esforçou por exibir depois da eleição, o seu enquadramento
pelo Congresso e outras instituições, serão suficientes para neutralizar os
desvarios em que tantos milhões de americanos acabaram por rever-se? Eis-nos
perante a esquizofrenia de um eleitorado frustrado com a herança de Obama mas
atribuindo ao Presidente cessante uma invejável taxa de popularidade. Um
eleitorado que cede às paixões mais primárias e se deixa embarcar num pesadelo
assustador, imagem invertida do sonho americano.
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