quarta-feira, 30 de novembro de 2016

IMPOSIÇÕES EUROPEIAS


“Não há regras europeias” é a primeira ideia clara que pontua o seguinte artigo de opinião que o dirigente bloquista José Gusmão no Público de hoje. Efectivamente, os países da UE com grande “peso político e económico” encontram-se como que dispensados do cumprimento dessas ditas regras. Não vale a pena referirmos quais são os países pois todos sabemos os seus nomes.
As “regras” são uma fantochada para encobrir a lei do mais forte numa organização em que se diz que os países são todos iguais perante a obrigação de as cumprir as ditas, mas alguns são mais iguais que os outros…
A segunda ideia apontada por José Gusmão vai no sentido de uma mais que necessária reestruturação da dívida, sem a qual não é possível colocar a mesma “em níveis que permitam um financiamento que não dependa do patrocínio do BCE”.
A aprovação do OE2017 e a provável saída de Portugal em 2017 do Procedimento por Défice Excessivo (PDE) devem ser celebradas pela esquerda com alguma moderação e lucidez. Claro que é irónico que seja uma maioria que se construiu em torno da ideia da devolução de direitos e rendimentos a conseguir o que quatro anos de massacre não atingiram. Mas convém que isso não se converta na ideia de que Portugal se libertou das imposições europeias, o que seria uma trágica ilusão.
Falo de “imposições” e não de “regras europeias” por uma razão simples: não há regras europeias, ponto final, parágrafo. Olhemos para Portugal, Espanha, Itália, França e, claro, Alemanha, e o que verificaremos é que enquanto o nosso governo levou a Bruxelas um orçamento que cumpre escrupulosamente as tais regras europeias, outros países dão-se ao luxo de as ignorar olimpicamente, com uma impunidade proporcional ao seu peso político e económico e  ao grau de identificação dos seus governos com as orientações de Bruxelas, nomeadamente ao nível das reformas estruturais.
Ora, Portugal pontua mal em ambos os critérios. No primeiro, sempre, no segundo, por enquanto. E nunca será um país autónomo enquanto mantiver o actual nível de endividamento. A dívida portuguesa só é sustentável enquanto o BCE continuar a comprar títulos. Desse ponto de vista, nada mudou. O nosso financiamento nos mercados não tem nada a ver com a política do anterior governo nem com a do actual, não há “confiança dos mercados” nenhuma. Portugal financia-se enquanto o BCE quiser.
Ora, o critério para o BCE querer é estritamente político. Após a crise financeira, não faltou quem questionasse o absurdo de ter agências de rating, que falharam escandalosamente nas suas análises e provaram a sua falta de fiabilidade, a qualificar ou desqualificar ativos perante o BCE. Mario Draghi resolveu o problema: não acabou com esse critério absurdo, mas acrescentou uma agência ao trio já existente, atribuindo-lhe um papel decisivo em toda a sua política de avaliação de activos. A DBRS, graças a essa decisão do BCE, garantiu um estatuto e uma rendibilidade que não tinha anteriormente. E assim se cria uma dependência.
O resto é teatro do mau. Draghi diz que, de acordo, com as regras, financia se houver uma agência a dizer que Portugal não é lixo. A DBRS diz que Portugal não é lixo porque Draghi lhe diz para dizer isso. Salva-se a ilusão da tecnocracia e o BCE continua a decidir, de forma inteiramente discricionária.
Bruxelas pode cortar o financiamento a Portugal sem ter de assumir qualquer responsabilidade política. Basta que o BCE diga à DBRS para dizer que Portugal é lixo. Bruxelas dirá que são as regras. É muito melhor do que aprovar sanções na comissão. Acresce que o programa do BCE ao abrigo do qual Portugal se consegue financiar está a ser alvo de crescentes pressões. Se tudo indica que Draghi irá anunciar em Dezembro a prorrogação do programa para lá de Março, este é um equilíbrio precário.
Estamos então condenados a obedecer? Não estamos, mas a autonomia democrática do país exige que se assegure uma dívida pública sustentável, apenas possível através de uma reestruturação. Essa reestruturação deve repor a dívida em níveis que permitam um financiamento que não dependa do patrocínio do BCE. A alternativa a este caminho é a perspectiva de, como proposto a Dâmocles, governar com uma espada em cima da cabeça. E uma república soberana que vive sob uma permanente ameaça não pode ser soberana. Nem sequer República.

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