Quem
gasta com regularidade algum do seu tempo a ver concursos televisivos de
cultura geral apercebe-se muitas vezes da falta de conhecimentos que grassa
entre os concorrentes, especialmente na faixa etária abaixo dos 50 anos. Também
se suspeita que o mesmo acontecerá entre quem elabora as perguntas, mais por
omissão do que por acção. Estamos a lembrarmo-nos, por exemplo, do reduzido
número de questões que se colocam na área da matemática e, mesmo assim,
revelando um significativo amadorismo na forma como são definidas, sintoma da
falta de conhecimento de quem as elabora. Organizar questões a partir de uma
Enciclopédia, sobre bandas de música, filmes, futebol ou actualidade, tem um
grau de dificuldade muito mais baixo e corre-se um risco muito menor de falhar…
O
texto seguinte é um excerto de um excelente artigo de opinião de Pacheco Pereira
que podemos ler no Público de hoje e que tem como pano de fundo a perigosa vaga
de ignorância que hoje alastra pelo mundo.
O problema actual da ignorância é que a
ignorância nunca teve tão boa imprensa, tão bons defensores, tão arrogantes
cavaleiros contra o saber, como nos dias de hoje. Um destes frutos da nova
ignorância é Presidente dos EUA, e acha que tudo o que é preciso saber para se
ter sucesso é conduzir o país ao modelo dos seus negócios predadores, e das
ideias racistas e xenófobas que nascem nos lugares mais infectos das redes
sociais. E estando ele onde está, escolhe os seus colaboradores ao mesmo modelo,
que escolherão os altos funcionários pela mesma bitola – na verdade
"comissários" destinados a zelar pelo #MAGA – e por aí adiante,
embrutecendo a sociedade de cima para baixo, dando toda a razão ao ditado
popular de que o “peixe apodrece pela cabeça”. A dissolução de todos os padrões
que implicavam que era preciso saber alguma coisa de ambiente, de comércio
internacional, de política externa, de educação para se exercerem funções
nessas áreas explicam por que razão a “desconfiança do conhecimento” (“distrust
for expertise”) e a dissolução da verdade (“fake news”) são hoje os
critérios de funcionamento da administração Trump. E enganam-se todos os que
não percebem que estas atitudes são modernas, moderníssimas, tanto como o
último telefone inteligente, para usar uma comparação apropriada.
E não é só nos EUA, também cá temos cada
vez mais activos zeladores da ignorância que querem colocar uma bola onde
costumava, quando os animais falavam, estar uma cabeça humana. As ideias
circulantes de que se substituem “literacias”, como agora se diz, que “já nada
dizem” aos jovens de hoje (e aos adultos diga-se de passagem), por outras
“literacias” que as substituem e são “mais apelativas” porque se podem digitar
num telefone, ou numa mensagem de 140 caracteres, ou “postar” como fotografias
de comida, ou a loquacidade vazia e deprimente do WhatsApp, destinadas a
substituir a sociabilidade presencial pela sociabilidade virtual, são
instrumentais para justificar a ignorância e varrer dos currículos tudo aquilo
que parece inútil, substituindo o conhecimento pela tagarelice e pelo generalizado
défice de atenção.
Não. Os conhecimentos não se substituem
uns aos outros, complementam-se. E o que falta, faz sempre falta. Várias vezes
me interrogo como é possível atirar alunos do secundário para ler Os Maias,
ou seja que obra for de Eça, ou Camilo, ou Camões, ou Gil Vicente, ou Nemésio,
ou Jorge de Sena, ou seja lá que obra literária que é suposto ler-se no
secundário e nos anos de escolaridade obrigatória, sem saber nada de mitologia
grega ou da Bíblia, já para não falar do rico vocabulário do português que não
cabe numa mensagem do Twitter. Não sei, aliás, por que se pensa nos nossos dias
que “não cabe” na cabeça das pessoas muita coisa. É irónico que a modernidade
nos forneça discos rígidos com terabites de espaço, e pareça encolher-nos as
cabeças.
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