Felizmente,
é neste momento uma evidência que a violência doméstica já se encontra
instalada em várias agendas, sendo uma das mais importantes a mediática, onde a
opinião pública vai sendo colocada a par deste flagelo, de muito maior dimensão
do que até há pouco tempo se poderia imaginar. Denunciar estas situações é
muito importante mas é apenas um começo e, por si, não resolve nada. A seguir, devem
entrar em acção os poderes democráticos constituídos, no sentido de ser criada
legislação que proteja as vítimas e castigue os agressores, não só como atitude
punitiva mas também como forma de dissuasão de futuros prevaricadores.
O
Bloco de Esquerda tem estado sempre na primeira linha no apoio à luta contra a
calamidade pública que constituem todas as formas de violência, em especial a
doméstica. Neste sentido, aqui deixamos o seguinte texto que constitui um
artigo de opinião assinado por Conceição Gomes (*) que transcrevemos do Público
de hoje.
É de violação de direitos fundamentais
que trata este artigo. Estudos vários evidenciam que, em todo o mundo, milhões
de seres humanos são vítimas de homicídio, de violência física, sexual e psicológica,
de humilhações e de abusos, que afetam a sua dignidade, os seus direitos e a
sua saúde, apenas por serem mulheres. A maior parte dessa violência tem em
comum duas características: é cometida numa relação de intimidade e é
denunciada em situações-limite, depois de muitas ocorrências, ou nunca chega a
ser denunciada. Fatores sociais, culturais e económicos silenciam não só as
mulheres, como as famílias, a comunidade e mesmo agentes do Estado. Este
silenciamento, legitimador da violência doméstica, tem a mesma origem
estrutural do fenómeno: as muitas desigualdades de género que continuam a
habitar as sociedades contemporâneas.
As políticas públicas de prevenção e
combate à violência doméstica têm, por isso, de estar muito atentas, quer ao
desenvolvimento de estratégias de desocultação do fenómeno, quer de ação na sua
origem, incluindo medidas de discriminação positiva que acelerem a emancipação
social das mulheres e ajudem a limitar a ação das estruturas sociais promotoras
de discriminação e de desigualdade. Embora o contexto político, social e
cultural possa agravar dramaticamente a situação de violência, esta é uma
realidade longe de ser experienciada apenas por mulheres de países com
economias mais débeis, políticas restritivas ou segregadores em função do
género e/ou sistemas jurídicos e judiciais pouco consolidados. Em 2015, por
exemplo, o primeiro-ministro australiano, ao anunciar um conjunto de medidas
para responder ao problema, declarava a violência contra as mulheres uma das
grandes vergonhas da Austrália. Como salienta a Organização Mundial da Saúde, a
violência doméstica tem impactos similares na saúde e bem-estar das vítimas,
independentemente do contexto cultural, social ou económico.
A gravidade da situação não significa
total imobilismo. Estudos desenvolvidos, ao longo de décadas, no âmbito de
diversas áreas do saber e/ou privilegiando uma abordagem multidisciplinar, têm
permitido não só confrontar as sociedades com as dimensões da violência
doméstica, como também fomentar a ação de organismos internacionais e das
políticas públicas nacionais na sua prevenção e repressão. Foi o que ocorreu
entre nós com a colocação na agenda política e legislativa, a partir da década
de 90 do século passado, de várias iniciativas legislativas e institucionais,
com um duplo objetivo: sublinhar a gravidade criminal da violência doméstica
(maioritariamente contra as mulheres) e reforçar o sistema social de proteção
às vítimas.
Apesar da importância do quadro jurídico
inovador, os indicadores estatísticos (em 2016, as polícias registaram 22.773
crimes de violência contra cônjuge ou análogo), as notícias dos jornais e os
estudos conhecidos evidenciam que a distância entre law in book e law
in action é ainda muito acentuada. Um estudo do Observatório Permanente da
Justiça, recentemente publicado pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de
Género, evidencia várias fragilidades na execução do quadro legal. Destaco a
articulação entre a ação judicial e a ação de outras entidades do Estado e da
comunidade e a formação dos atores judiciais. O excessivo enfoque mediático na
perspetiva judicial coloca os tribunais no epicentro do debate, desviando a
atenção sobre a ação concreta do Estado e da comunidade em outros domínios que
anulem, ou, pelo menos, enfraqueçam a ação de fatores culturais, sociais e
económicos, condicionantes da vontade das vítimas pelo medo da pobreza e da
exclusão social. O estudo da Agência dos Direitos Fundamentais da União
Europeia recomenda, por um lado, que as políticas nacionais de combate à violência
contra as mulheres sejam desenvolvidas com base em dados obtidos diretamente da
experiência de violência das mulheres e, por outro, que “a política da União
Europeia em matéria de emprego, educação, saúde e tecnologias de informação e
comunicação deve abordar o impacto da violência contra as mulheres nos seus
respetivos domínios”.
Mas tal não significa diminuição da
importância, normativa e simbólica, da ação dos tribunais. Neste campo, o
trabalho empírico desenvolvido mostra que há ainda um longo caminho a percorrer
na construção de uma cultura e práticas judiciárias mais atentas à situação de
vulnerabilidade das vítimas e às várias dimensões do fenómeno, quer no que
respeita ao tratamento da vítima (por exemplo, atendimento por agentes
devidamente formados, audição em espaços e com tempos adequados e usando uma
linguagem clara, privilegiando a intervenção multidisciplinar), aos desafios da
produção de prova, melhor compreendendo o contexto “entre portas” da ocorrência
da maior parte da violência, os condicionamentos da vítima, a invisibilidade e
naturalização social da violência, quer no que respeita à resposta, articulada,
célere e eficiente, a outras vertentes judiciais do problema, como seja a
regulação das responsabilidades parentais, o divórcio e a partilha de bens,
disseminada por vários processos em diferentes tribunais, por vezes, em outros
locais. Para a mudança na ação dos tribunais é crucial desenvolver políticas
fortes no campo da formação dos atores judiciais, quer de formação nas faculdades
de Direito e de formação inicial, quer de formação contínua, promotoras da
compreensão global e interdisciplinar do fenómeno social e da valorização dos
direitos humanos.
(*) Investigadora
do CES e Coordenadora Executiva do Observatório
Permanente da Justiça, entre outros cargos.
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