segunda-feira, 28 de novembro de 2011

TAMBÉM EU NÃO GOSTEI!

O artigo de opinião com a assinatura de Isabel do Carmo que o “Público” (edição impressa) traz hoje é de leitura essencial, tanto para os mais novos (idade inferior a 50 anos) como para os mais esquecidos. O texto traça um excelente retrato do Portugal que terminou em Abril de 1974.
Também eu, que não tenho memória curta, recordo bem o que foram esses tempos.
“Na terra onde nasci e vivi” eu era um privilegiado mas a miséria que via à minha volta sempre me impressionou.
Os rapazes iam descalços para a escola, conheciam o cheiro da carne só em dias de festa, o peixe que comiam resumia-se às variedades mais baratas como a sardinha ou a cavala e, mesmo assim de forma muito rateada. Se queriam comer fruta tinham de a ir roubar às “fazendas”, durante o Verão e início do Outono.
Os adultos que, na maioria, trabalhavam na agricultura ou na pesca, durante o Inverno, quando o tempo não o permitia, estavam semanas sem ganhar, a única fartura que tinham para si e para os filhos eram fome e carências de toda a ordem. Trabalhavam até à exaustão e eram os filhos que tomavam os pais a cargo, na sua curta velhice. Umas miseráveis pensões de reforma só apareceram no final do regime salazarista.
A escolaridade, para além de um reduzido número de privilegiados, não ia além dos quatro anos. Em todo o Algarve existiam dois Liceus e duas “Escolas Técnicas”. Para estas iam jovens pertencentes à pequena burguesia urbana, cuja família não tinha “posses” para custear mais que um curto curso técnico (industrial ou comercial) até ao 5º ano (actual 9º). Para os Liceus iam os meninos com pretensões a um curso superior, um reduzidíssimo número de privilegiados que tinham pais com arcaboiço financeiro que permitia suportar os custos de deslocação para a Universidade, em Lisboa, Porto ou Coimbra.
Tal como Isabel do Carmo, também eu “já vivi neste país e não gostei”. De todo. (Luís Moleiro, cidadão deste país, 63 anos)
Mas voltemos ao texto de Isabel do Carmo.

Já vivi nesse país e não gostei
"O primeiro-ministro anunciou que íamos empobrecer, com aquele desígnio de falar "verdade", que consiste na banalização do mal, para que nos resignemos mais suavemente. Ao lado, uma espécie de contabilista a nível nacional diz-nos, como é hábito nos contabilistas, que as contas são difíceis de perceber, mas que os números são crus. Os agiotas batem à porta e eles afinal até são amigos dos agiotas. Que não tivéssemos caído na asneira de empenhar os brincos, os anéis e as pulseiras para comprar a máquina de lavar alemã. E agora as jóias não valem nada. Mas o vendedor prometeu-nos que... Não interessa.
Vamos empobrecer. Já vivi num país assim. Um país onde os "remediados" só compravam fruta para as crianças e os pomares estavam rodeados de muros encimados por vidros de garrafa partidos, onde as crianças mais pobres se espetavam, se tentassem ir às árvores. Um país onde se ia ao talho comprar um bife que se pedia "mais tenrinho" para os mais pequenos, onde convinha que o peixe não cheirasse "a fénico". Não, não era a "alimentação mediterrânica", nos meios industriais e no interior isolado, era a sobrevivência.
Na terra onde nasci, os operários corticeiros, quando adoeciam ou deixavam de trabalhar vinham para a rua pedir esmola (como é que vão fazer agora os desempregados de "longa" duração, ou seja, ao fim de um ano e meio?). Nessa mesma terra deambulavam também pela rua os operários e operárias que o sempre branqueado Alfredo da Silva e seus descendentes punham na rua nos "balões" ("Olha, hoje houve um "balão" na Cuf, coitados!"). Nesse país, os pobres espreitavam pelos portões da quinta dos Patiño e de outros, para ver "como é que elas iam vestidas".
Nesse país morriam muitos recém-nascidos e muitas mães durante o parto e após o parto. Mas havia a "obra das Mães" e fazia-se anualmente "o berço" nos liceus femininos onde se colocavam camisinhas, casaquinhos e demais enxoval, com laçarotes, tules e rendas e o mais premiado e os outros eram entregues a famílias pobres bem-comportadas (o que incluía, é óbvio, casamento pela Igreja).
Na terra onde nasci e vivi, o hospital estava entregue à Misericórdia. Nesse, como em todos os das Misericórdias, o provedor decidia em absoluto os desígnios do hospital. Era um senhor rural e arcaico, vestido de samarra, evidentemente não médico, que escolhia no catálogo os aparelhos de fisioterapia, contratava as religiosas e os médicos, atendia os pedidos dos administrativos ("Ó senhor provedor, preciso de comprar sapatos para o meu filho"). As pessoas iam à "Caixa", que dependia do regime de trabalho (ainda hoje quase 40 anos depois muitos pensam que é assim), iam aos hospitais e pagavam de acordo com o escalão. E tudo dependia da Assistência. O nome diz tudo. Andavam desdentadas, os abcessos dentários transformavam-se em grandes massas destinadas a operação e a serem focos de septicemia, as listas de cirurgia eram arbitrárias. As enfermarias dos hospitais estavam cheias de doentes com cirroses provocadas por muito vinho e pouca proteína. E generalizadamente o vinho era barato e uma "boa zurrapa".
E todos por todo o lado pediam "um jeitinho", "um empenhozinho", "um padrinho", "depois dou-lhe qualquer coisinha", "olhe que no Natal não me esqueço de si" e procuravam "conhecer lá alguém".
Na província, alguns, poucos, tinham acesso às primeiras letras (e últimas) através de regentes escolares, que elas próprias só tinham a quarta classe. Também na província não havia livrarias (abençoadas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian), nem teatro, nem cinema.
Aos meninos e meninas dos poucos liceus (aquilo é que eram elites!) era recomendado não se darem com os das escolas técnicas. E a uma rapariga do liceu caía muito mal namorar alguém dessa outra casta. Para tratar uma mulher havia um léxico hierárquico: você, ó; tiazinha; senhora (Maria); dona; senhora dona e... supremo desígnio - Madame.
Os funcionários públicos eram tratados depreciativamente por "mangas-de-alpaca" porque usavam duas meias mangas com elásticos no punho e no cotovelo a proteger as mangas do casaco.Eu vivi nesse país e não gostei. E com tudo isto, só falei de pobreza, não falei de ditadura. É que uma casa bem com a outra. A pobreza generalizada e prolongada necessita de ditadura. Seja em África, seja na América Latina dos anos 60 e 70 do século XX, seja na China, seja na Birmânia, seja em Portugal."

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