O seguinte texto faz parte da edição impressa do “Público” de hoje e, referindo-se a um bairro bem determinado do Porto, retrata, muito provavelmente, a situação dos habitantes de imensas regiões do país. Tem a qualidade rara de usar a terminologia certa para a situação que relata. Parece que passámos a viver num mundo em que denunciar a pobreza, a fome e as injustiças sociais é sinónimo de extremismo político. E pactuar com elas o que é?
POBREZA IDEOLOGIA E AUSTERIDADE
Trabalho desde 1997 na freguesia mais pobre do concelho do Porto. Às terças e quartas vou ao encontro dos moradores do Bairro do Lagarteiro, em Campanhã. Esta ligação e proximidade, o envolvimento na resolução dos seus principais problemas, o compromisso de os politizar e o afecto que sinto por esta gente sofrida devolvem-me alguma legitimidade para falar e escrever sobre a pobreza severa que agora invade estes agregados familiares.
O caminho do empobrecimento, da austeridade, dos cortes cegos nos apoios sociais e do desmantelamento do Estado social desta governação neoliberal de Passos Coelho tem-se reflectido muito no agravamento das condições de subsistência destas famílias. Antes de o FMI ter chegado a Portugal, o Governo de José Sócrates já tinha aberto com delicadeza a porta às decisões políticas subordinadas ao capitalismo. Agora, para fazerem uma refeição de carne, alguns dos meus utentes vão de forma envergonhada ao fim do dia bater à porta do proprietário do talho pedir aparos, carne que, vulgarmente, no Porto, se dá aos cães. Muitas famílias já não conseguem visitar com a mesma regularidade os familiares detidos. Começa a ser frequente pedir à professora para colocar mais comida no prato dos meninos, porque à noite estas crianças não vão ter oportunidade de fazer em casa uma refeição digna. Muitos adolescentes deixaram de viajar com passe dos STCP. As famílias criaram débitos gigantescos à EDP, à Águas do Porto, à câmara municipal, à farmácia, à mercearia. Os doentes pobres não conseguem adquirir os medicamentos prescritos nas receitas médicas. Muitos casais jovens, já com filhos, começam a regressar a casa dos pais, por verem a casa que compraram ser hipotecada pelo banco.
É neste contexto que o Estado deve ter músculo e sensibilidade social para apoiar as famílias mais vulneráveis e desfavorecidas. Mas o que realmente se verifica é a perseguição e a estigmatização dos beneficiários do rendimento social de inserção (RSI). Perante uma situação de emergência social apela-se à caridade e ao assistencialismo, degrada-se a qualidade das respostas sociais, diminui-se o orçamento da Segurança Social e corta-se nos apoios e nas prestações sociais. De acordo com os dados da própria Segurança Social, o número de beneficiários do RSI sofreu um corte e uma quebra de quase 20% e 32 mil famílias perderam o apoio entre Agosto de 2010 e Outubro de 2011.
Cerca de 176 mil crianças deixaram de receber abono de família entre Dezembro de 2010 e Dezembro de 2011. Milhares de jovens perderam o direito à bolsa e há estudantes a abandonar a faculdade. Mais de 40 mil postos de trabalho foram perdidos por mês no último trimestre de 2011.
No que diz respeito à protecção em situação de desemprego, esta política torna-se ainda mais grave e preocupante. Em 2006, cerca de 75% dos desempregados recebiam subsídio de desemprego. Agora, há mais de um milhão e cem mil desempregados e só 27% estão protegidos com subsídio de desemprego. A situação vai agravar-se.
Não há dinheiro nem recursos para proteger os pobres e os desempregados dos efeitos nefastos da crise, mas há dinheiro para o BPN e para recapitalizar a banca. Não há dinheiro para salvar os postos de trabalho da cerâmica de Valadares ou dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, mas há dinheiro na Caixa Geral de Depósitos para emprestar ao Grupo Melo quando ele decidir comprar a Brisa.
Afinal, o Estado existe. Existe para proteger determinados interesses de classe. O Estado existe para proteger o grande capital dos riscos da especulação financeira. Para dar aos amigos do partido os melhores cargos, carregados de benefícios, privilégios e regalias. O Estado existe para vender ao desbarato as nossas principais empresas públicas. O Estado existe para através das parcerias público-privadas arruinar as contas públicas. O Estado existe para dar porrada nos manifestantes, para calar e despedir jornalistas. O Estado existe para nos mentir. Dizem-nos que a dívida é pública e soberana e nós bem sabemos que a dívida é particular e criada pelos bancos. A narrativa neoliberal diz-nos que as pessoas que passam fome podem esperar, os desempregados podem emigrar, os mais conscientes podem dar um tiro na cabeça.
Os sacrifícios impostos e as mentiras já ultrapassaram todos os limites. A coesão social vai estalar. O arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, alerta para o risco de grande colapso social. Já ninguém acredita em inevitabilidades, a vida e a esperança não podem ficar hipotecadas nas decisões do egoísmo capitalista. A luta pode gerar mudança. A ganância dos mercados pode ser travada. A dignidade do ser humano vale muito a pena. É por isso que não desisto das pessoas. (José António Pinto)
POBREZA IDEOLOGIA E AUSTERIDADE
Trabalho desde 1997 na freguesia mais pobre do concelho do Porto. Às terças e quartas vou ao encontro dos moradores do Bairro do Lagarteiro, em Campanhã. Esta ligação e proximidade, o envolvimento na resolução dos seus principais problemas, o compromisso de os politizar e o afecto que sinto por esta gente sofrida devolvem-me alguma legitimidade para falar e escrever sobre a pobreza severa que agora invade estes agregados familiares.
O caminho do empobrecimento, da austeridade, dos cortes cegos nos apoios sociais e do desmantelamento do Estado social desta governação neoliberal de Passos Coelho tem-se reflectido muito no agravamento das condições de subsistência destas famílias. Antes de o FMI ter chegado a Portugal, o Governo de José Sócrates já tinha aberto com delicadeza a porta às decisões políticas subordinadas ao capitalismo. Agora, para fazerem uma refeição de carne, alguns dos meus utentes vão de forma envergonhada ao fim do dia bater à porta do proprietário do talho pedir aparos, carne que, vulgarmente, no Porto, se dá aos cães. Muitas famílias já não conseguem visitar com a mesma regularidade os familiares detidos. Começa a ser frequente pedir à professora para colocar mais comida no prato dos meninos, porque à noite estas crianças não vão ter oportunidade de fazer em casa uma refeição digna. Muitos adolescentes deixaram de viajar com passe dos STCP. As famílias criaram débitos gigantescos à EDP, à Águas do Porto, à câmara municipal, à farmácia, à mercearia. Os doentes pobres não conseguem adquirir os medicamentos prescritos nas receitas médicas. Muitos casais jovens, já com filhos, começam a regressar a casa dos pais, por verem a casa que compraram ser hipotecada pelo banco.
É neste contexto que o Estado deve ter músculo e sensibilidade social para apoiar as famílias mais vulneráveis e desfavorecidas. Mas o que realmente se verifica é a perseguição e a estigmatização dos beneficiários do rendimento social de inserção (RSI). Perante uma situação de emergência social apela-se à caridade e ao assistencialismo, degrada-se a qualidade das respostas sociais, diminui-se o orçamento da Segurança Social e corta-se nos apoios e nas prestações sociais. De acordo com os dados da própria Segurança Social, o número de beneficiários do RSI sofreu um corte e uma quebra de quase 20% e 32 mil famílias perderam o apoio entre Agosto de 2010 e Outubro de 2011.
Cerca de 176 mil crianças deixaram de receber abono de família entre Dezembro de 2010 e Dezembro de 2011. Milhares de jovens perderam o direito à bolsa e há estudantes a abandonar a faculdade. Mais de 40 mil postos de trabalho foram perdidos por mês no último trimestre de 2011.
No que diz respeito à protecção em situação de desemprego, esta política torna-se ainda mais grave e preocupante. Em 2006, cerca de 75% dos desempregados recebiam subsídio de desemprego. Agora, há mais de um milhão e cem mil desempregados e só 27% estão protegidos com subsídio de desemprego. A situação vai agravar-se.
Não há dinheiro nem recursos para proteger os pobres e os desempregados dos efeitos nefastos da crise, mas há dinheiro para o BPN e para recapitalizar a banca. Não há dinheiro para salvar os postos de trabalho da cerâmica de Valadares ou dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, mas há dinheiro na Caixa Geral de Depósitos para emprestar ao Grupo Melo quando ele decidir comprar a Brisa.
Afinal, o Estado existe. Existe para proteger determinados interesses de classe. O Estado existe para proteger o grande capital dos riscos da especulação financeira. Para dar aos amigos do partido os melhores cargos, carregados de benefícios, privilégios e regalias. O Estado existe para vender ao desbarato as nossas principais empresas públicas. O Estado existe para através das parcerias público-privadas arruinar as contas públicas. O Estado existe para dar porrada nos manifestantes, para calar e despedir jornalistas. O Estado existe para nos mentir. Dizem-nos que a dívida é pública e soberana e nós bem sabemos que a dívida é particular e criada pelos bancos. A narrativa neoliberal diz-nos que as pessoas que passam fome podem esperar, os desempregados podem emigrar, os mais conscientes podem dar um tiro na cabeça.
Os sacrifícios impostos e as mentiras já ultrapassaram todos os limites. A coesão social vai estalar. O arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, alerta para o risco de grande colapso social. Já ninguém acredita em inevitabilidades, a vida e a esperança não podem ficar hipotecadas nas decisões do egoísmo capitalista. A luta pode gerar mudança. A ganância dos mercados pode ser travada. A dignidade do ser humano vale muito a pena. É por isso que não desisto das pessoas. (José António Pinto)
Sem comentários:
Enviar um comentário