A forma como foi levada a cabo a campanha designada por ‘Zero de desperdício’ está a levantar algumas críticas. Curiosamente o padrinho desta campanha, o Presidente da República, queixava-se ainda não há muito tempo de mal poder viver com dez mil euros. Ei-lo agora a restaurar a caridade oficial em vez de defender uma verdadeira distribuição da riqueza e uma justiça social a sério.
Mas o que choca mais nesta iniciativa é o “hino humilhante” que lhe está associado, e a cobertura que lhe foi dada por pessoas de quem se esperava uma postura diferente em relação ao respeito que devemos ter pela dignidade daqueles que agora se encontram em situação de necessidade absoluta.
No texto seguinte, melhor do que nós, Daniel Oliveira assume a crítica necessária. (Expresso, 21/4/2012)
OS RESTOS DA DIGNIDADE
“O que eu não aproveito ao almoço e ao jantar a ti deve dar jeito, temos de nos encontrar.”
Se um amigo, sabendo-o em dificuldades, lhe telefonasse a dizer isto, como se sentiria? Se alguém se lhe dirigisse assim, prometendo-lhe os seus restos de comida, como se faz com um cão, o que lhe responderia? É esta a primeira regra de solidariedade: não tratar os outros como não gostaríamos de ser tratados. Não partir do princípio que, por viverem momentos difíceis, deixaram de merecer os mesmos cuidados que nós próprios merecemos quando a vida nos corre bem. Sei que num país onde a cultura da caridade e do favor está tão naturalizada como a desigualdade, isto parece ser um pormenor. Não é. Um gesto, por mais nobre que seja, vem acompanhado pela forma desse gesto. Esperava que quem vive das palavras percebesse o seu valor. E mais ainda quando são pessoas que tenho como socialmente conscientes. A frase que citei faz parte da letra de um hino uma campanha: ‘Zero de desperdício’. Ouvir, entre muitos outros, Sérgio Godinho, Jorge Palma ou Camané, pessoas que admiro não apenas como músicos, dar a voz a esta inanidade arrepiou-me.
Nada tenho contra uma campanha de combate ao desperdício. Pelo contrário. Nada tenho contra a ajuda concreta a pessoas concretas, não esperando apenas que o problema maior se resolva. As grandes causas não podem esquecer os problemas de agora. Urgentes, particulares, mas enormes. Mas tenho tudo contra a ideia de fazer da esmola uma campanha patrocinada pelo Presidente da República (o tal que mal pode viver com dez mil euros). Julgava que a caridade oficial deixara de ser política do Estado. Uma esmola é uma esmola. Pode ser necessária, porque urgente, mas não deixa de ser a troca de um direito por um favor. E a coisa ainda se torna mais insuportável quando a ela está associado um hino humilhante para quem recebe o apoio.
A iniciativa até pode ser defensável. Como seguramente o é o Banco Alimentar Contra a Fome – onde damos aos outros o mesmo que compramos para nós, porque ninguém merece menos do que isso, e não o que não aproveitamos ao almoço e ao jantar. Mas as palavras que acompanham cada gesto fazem diferença. Dar aos outros os nossos restos traz sempre consigo alguma vergonha. A nossa e a de quem recebe. Será mesmo necessário torna-lo aviltante? Esta letra só pode ser ouvida com naturalidade num país intrinsecamente injusto. Porque este hino traduz em toda a sua deselegância, o desrespeito pelo outro que a desigualdade representa.
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