A
chamada comunidade internacional comandada a partir de pontos bem definidos,
sempre muito lesta a denunciar casos de violação dos direitos humanos em
situações convenientes, ignora de forma conivente o genocídio levado a cabo
pelo governo israelita sobre o povo palestiniano. Só uma manifesta má-fé
permite que isto aconteça quase sem qualquer reacção. Somos assim levados a
pensar que também em termos de violação dos direitos humanos há violadores bons
e violadores maus.
A
Faixa de Gaza, o local do mundo com maior densidade populacional, constitui uma
espécie de prisão a céu aberto onde as tropas israelitas prendem e assassinam
pessoas, com a maior das impunidades. Um dos últimos casos conhecidos foi o
assassinato da paramédica, voluntária, de 21 anos, Razan Al-Najar quando
tentava “salvar vidas na Marcha do Regresso”. Foi um crime em toda a extensão da
palavra, mais um que não vai ser punido.
O
texto seguinte, assinado no “Público” de hoje por Shahd Wadi, investigadora em
assuntos palestinianos e feministas, constitui uma espécie de homenagem à
coragem de Razan Al-Najar e, de um modo geral, às mulheres palestinianas que
lutam contra a ocupação israelita.
Deve-se
ainda referir, para memória futura, que a tentativa de extermínio de todo um povo,
a mando do governo de extrema-direita de Israel, conta com o apoio da
generalidade da população deste país…
“A Paz e o Amor jamais irão morrer.” Foi isto que
estava escrito numa faixa no funeral de Razan Al-Najar, no qual participaram
milhares de pessoas em Gaza. Razan era uma paramédica voluntária de 21 anos,
assassinada pelo exército israelita enquanto estava a tentar salvar vidas na
Marcha do Regresso. Levantou os seus braços mostrando a sua bata branca, mesmo
assim foi atingida com uma bala que furou o peito.
Um dia antes da morte de Razan, um artigo no PÚBLICO estava precisamente a
justificar o assassínio de uma bebé nesta marcha. Seguindo a ética patriarcal
de sempre culpabilizar as mães e a estratégia colonial israelita de sempre
demonizar as mulheres palestinianas, o artigo incrimina a mãe pela morte da sua
cria por a ter levado à manifestação, e isentava as bombas lacrimogénias
israelitas que mataram a criança. O artigo vai por além, colocando a palavra
“massacre” entre aspas. De facto, a morte de 128 palestinianos e palestinianas
por protestarem pacificamente não é apenas um massacre, mas, sim, um massacre
que não distingue crianças, jornalistas ou médicos. Mata sem aspas, sem
vírgulas, sem sequer um ponto de interrogação. Será que agora a autora desse
mesmo artigo irá questionar também o porquê de estar a paramédica Razan
Al-Najar na Marcha do Regresso? Questionará porque é que ela tentava salvar
vidas? Ou será que colocará “as vidas palestinianas” entre aspas,
considerando-as vidas que não merecem ser salvas, menos dignas, menos humanas?
Razan não era uma paramédica qualquer. Poucos dias
antes de morrer, apareceu em diferentes meios de comunicação por ser uma das
primeiras mulheres paramédicas a trabalhar directamente no terreno da Marcha do
Regresso. Numa das entrevistas, Razan afirmou: “O nosso objectivo é salvar
vidas... e mandar uma mensagem ao mundo, que nós sem armas somos capazes de
fazer tudo”. Falou do orgulho do pai dela e criticou o sexismo em Gaza: “A
sociedade tem que aceitar-nos [mulheres]. Se não nos aceitar por escolha, vai
ter que aceitar-nos à força. Acredito que temos mais força do que muitos
homens. Aposto que nenhum teve a coragem que eu mostrei no primeiro dia de
protestos como primeira paramédica.” Razan era uma mulher que ousava forçar uma
sociedade, uma mulher que se atrevia a enfrentar a ocupação, tendo a bata
branca como a sua única arma. Para o poder colonial patriarcal israelita, a
atrevida Razan era uma mulher perigosa.
A
ocupação israelita quer manter uma certa imagem sobre as mulheres palestinianas
para servir uma das suas duas narrativas: a imagem de terrorista, islâmica,
misteriosa, inumana e sobretudo perigosa e assim, utilizando o conceito da
filósofa judia Judith Butler, a sua vida não merece o choro quando é terminada.
A sua morte é justificada. Na segunda, a ocupação israelita junta-se à
narrativa hegemónica colonial ocidental e retrata a mulher palestiniana como
primitiva, oprimida, vítima da sua sociedade e que precisa do ocupante para a
“libertar”, e assim justifica moralmente a ocupação. O contraste entre a
emancipação e humanidade de Razan, de um lado, e estas imagens, por outro lado,
confundiram as estratégias coloniais patriarcais. Razan Al-Najar, tal como Ahed
Tamimi e muitas outras meninas palestinianas desta geração, confrontaram e
contrariam esta narrativa: são mulheres palestinianas à sua maneira, resistem,
ao mesmo tempo, à ocupação israelita e à sociedade palestiniana com as armas
mais corajosas e mais humanas. Resistem nas condições que elas próprias
molduram.
A
morte de Razan Al-Najar com sua bata médica não foi por acaso, tal como a morte
do fotojornalista palestiniano Yasser Murtaja com o colete de jornalista também
não foi uma coincidência. Razan desafiou as estruturas de poder coloniais e
patriarcais e redefiniu a resistência, reescreveu-a numa linguagem palestiniana
de mulheres com coragem e não abdicou de nenhuma luta até ao tiro... Um tiro
que não vai calar as palestinianas. Um tiro que matou Razan mas que nunca
matará o seu sorriso. O sorriso de Razan será para sempre um sorriso
palestiniano livre.
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