Por
ocasião da passagem do primeiro aniversário sobre a tragédia de Pedrógão Grande
que provocou mais de seis dezenas de vítimas mortais, os portugueses assistiram
através da comunicação social a um monumental festival de hipocrisia e de
propaganda. As lágrimas de crocodilo vertidas em prol das vítimas, por parte
dos principais responsáveis políticos pelos incêndios e suas terríveis consequências,
davam para encher piscinas mas não os podem ilibar do imenso grau de culpa que
impende sobre os seus ombros. De forma nenhuma podemos esquecer a acumulação de
responsabilidades dos decisores políticos do antigo “arco da governação” – para
que não nos esqueçamos, PS, PSD e CDS – que levaram à desertificação do
interior do país, com o consequente abandono das terras e a criação de condições
para o aparecimento de devastadores incêndios.
Vários
especialistas são de opinião de que o que foi levado a cabo durante o último
ano foi “muito pouco” para evitar novos Pedrógão Grande. Quem comunga desta
opinião é João Camargo, Investigador em Alterações Climáticas, autor do artigo
de opinião seguinte que transcrevemos do “Público” de hoje.
Um ano depois dos incêndios de Pedrógão Grande, a
maior parte das avaliações acerca do que foi feito revela-nos que o futuro
ainda é um lugar sombrio, e que caminhamos para ele sem bússola, sem coragem e
sem estrada. Perante as florestas do medo, do despovoamento, da desertificação
e da monocultura, que continuam a ser vitoriosas, importa construir esperança
para um futuro viável.
Os últimos meses viram a pressa de comemorar o
aniversário com “obra feita”. A gigantesca campanha de abate de árvores a régua
e esquadro, promovida pela Autoridade Tributária e Aduaneira e vigiada pela
Guarda Nacional Republicana, é o exemplo acabado do que não fazer, embora tenha
ficado bonito em alguma imprensa e agradado a pessoas que admiram a decisão,
mesmo que seja errada, e a obstinação, mesmo que seja absurda e atinja o
contrário do que é preciso fazer. A reconstrução de casas e reinvestimento nas empresas
afectadas pelos incêndios, semi-atingida, serviu para animar as celebrações. Já
as “reformas para a floresta”, as promessas de mudar o interior, qualquer ideia
para o mundo rural que não fosse ser estaleiro madeireiro, pasto de chamas e
deserto, nada feito. As pontuais iniciativas, chamando batalhões de jornalistas
para pontapés de saída, não mudaram a perspectiva de economia extractivista de
pessoas e recursos naturais, exploradas sem retorno, sem devolver aos solos,
sem cuidar e sem pensar a longo prazo.
Neste ano foi feito muito pouco para celebrar a vida e
lamentar a morte de mais de 60 pessoas, e particularmente para evitar perdas
futuras. Para observar a estrutura florestal que permitiu a tragédia, em
conjunto com condições climatéricas extremas, basta fazer uma viagem pela
EN-236 ou pelo IC-8: nos pés dos pinheiros e carvalhos mortos estão os novos
eucaliptos de semente, os eucaliptos queimados mostram a sua endurance,
alguns rebentaram há uns bons 11 meses, quer dos pés, quer dos troncos, quer
das copas.
O cadastro florestal está hoje tão próximo como estava
após os incêndios catastróficos de 2003 ou de 2005.
Houve uma corrida ao eucalipto antes da entrada em
vigor do regime de suposto travão a novas plantações (que permite a
transferência para zonas de maior produtividade), cifrando-se em mais 40
milhões de pés certificados pelo Instituto de Conservação da Natureza e
Florestas para entrar no circuito comercial. Podemos vê-los por todo o
território também: além de terem rebentado os eucaliptos ardidos e nascido os
novos de semente, são claras as novas plantações. Com gestão, sem gestão,
abandonados, sozinhos e juntos com outras árvores, com outras espécies
invasoras inflamáveis como acácias e háqueas, o eucaliptal reafirmou-se. O
último ano não serviu para nada além de assustar as pessoas, consolidar a ideia
de florestas de medo e ao mesmo tempo garantir que não actuamos sobre os
factores sobre os quais podemos actuar: populações humanas, ordenamento do
território, composição de espécies.
Continua a vencer a ideia de inevitabilidade: que não
conseguimos travar o despovoamento, que não conseguimos travar a
desertificação, que não conseguimos evitar ter uma mancha florestal altamente
combustível de uma espécie exótica e invasora, que aliás não conseguimos sequer
evitar que se expanda essa mancha de eucalipto (que já é de longe a maior do
mundo, apesar da nossa pequenez geográfica). O subtexto desta inevitabilidade
não esconde mais do que a necessidade de manter intactos os interesses das
empresas de celulose, em particular a The Navigator Company e a Altri Florestal
(que, aliás, registaram no último ano lucros recorde — embora não conheçamos a
razão para tal por falta de qualquer regulação pública relevante, quer sobre os
preços da madeira ardida e não ardida, quer sobre o preço dos outros factores
de produção).
Atravessamos
hoje o país e vemos tanta floresta morta, tanta área ardida e o rebentar de
mais matos e espécies exóticas e invasoras, que a desolação e a impotência são
sentimentos recorrentes. As áreas florestais não nos transmitem sensações de
tranquilidade, de harmonia, de diversidade e transcendência, mas transmitem, em
muitos casos, medo.
Para
bater as florestas do medo, precisamos de florestas de esperança. Precisamos
rejeitar a tristonha e inútil ideia de destino, a triste sina de minguar,
mirrar, degradar e desaparecer. Precisamos construir uma estrada para o futuro,
com base no interesse das populações e das futuras gerações. Relembremos as
vidas perdidas no Verão de 2017 com a coragem necessária para deitar o medo e a
inevitabilidade para o caixote do lixo.
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