Já
nos habituámos a que os artigos de opinião assinados, na comunicação social
escrita, pelo Investigador em Alterações Climáticas, João Camargo, constituem
excelentes fontes de informação relativas à defesa do ambiente, muitas vezes
abordando temas do quase completo desconhecimento do comum das pessoas mas do
maior interesse para as populações. É o caso do texto seguinte, que veio à estampa no "Público" de hoje, em que também
colabora o Eng. Silvicultor Paulo Pimenta de Castro, onde o conceito de “sumidouro
de carbono” é o tema base, para se concluir que aquilo que o Governo pretende
levar a cabo utilizando este meio como contribuição para o combate às
alterações climáticas não passa de pura propaganda, acabando apenas por favorecer
o grupo dos privilegiados do costume…
O Governo português anunciou há dois anos que
pretendia atingir a “neutralidade carbónica”, isto é, que as suas emissões de
gases com efeito de estufa seriam contrabalançadas pelos sumidouros de carbono,
como forma de combater as alterações climáticas. Cada vez fica mais claro que
nunca passou de um exercício cosmético e de propaganda, tendo o Governo
autorizado furos petrolíferos ao mesmo tempo que abre a porta para entregar o
grande potencial de sumidouro para uma nova área de negócios à fileira do papel
e da biomassa: queimar floresta para energia.
É reconhecido no plano internacional que as florestas
podem ter um papel de destaque na descarbonização da sociedade. Em teoria,
quanto mais rápido o crescimento das árvores, mais rápido se processa o
sequestro de carbono. Seria válido, desde que depois não se cortassem as
árvores no curto prazo. E ainda menos válido se a madeira ficasse em produtos
de ciclo curto, como a queima para energia ou o fabrico de pasta para papel (ao
contrário da madeira para construção ou mobiliário). E de validade nula com a
falta de gestão que hoje predomina nas áreas florestais em Portugal.
É preciso deitar por terra um mito importante: uma
floresta não é um sumidouro de carbono só por si. Quando olhamos para as áreas
florestais portuguesas isso torna-se claro. Uma área florestal estabilizada,
composta por múltiplas espécies que interagem entre si, com capacidade de retenção
de solos e água, pode ser de facto um sumidouro de carbono, retendo-o nas suas
raízes, no solo com que interage, no seu tronco, nas suas folhas, durante
décadas ou até séculos. Uma área florestada com espécies de crescimento rápido,
instalada com mobilização e fertilização de solos, “tratada” com agro-químicos,
cortada uma dúzia de anos depois, com enorme potencial de arder nessa dúzia de
anos não é um sumidouro de carbono. O carbono que retém será perdido assim que
for processado numa fábrica, seja ela para produzir pasta de papel ou energia,
o que manifestamente ocorrerá em pouco mais do que uma década.
A diferenciação entre conceitos de floresta, aceitando
ou não a presença de plantações florestais, é central para a questão de ser ou
não sumidouro de carbono: Portugal aceita o conceito oficial da FAO
(Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), que inclui as
plantações florestais de espécies exóticas (e em Portugal estas predominam em
área). Considerando a maneira como são geridas estas plantações, em Portugal é
absurdo considerar as suas áreas florestais actuais como um sumidouro de
carbono. Não são. E isto ainda sem sequer falar de incêndios florestais.
Dizer que se vai apostar no papel da floresta
(plantações incluídas) para a descarbonização da sociedade portuguesa é
totalmente incompatível com qualquer ideia de expandir as áreas de plantações
florestais, em particular de eucalipto. Entende-se a dificuldade da governação
em gerir esta bipolaridade, entre a redução de emissões e a disseminação de
“fósforos” pelo território nacional, conhecidas que são as portas giratórias
entre o poder político e as celuloses em Portugal. Parte dos intervenientes no
debate sobre o papel da floresta na descarbonização da sociedade enfermam deste
vício. Não foi por isso de estranhar então um debate recente do Roteiro para a
Neutralidade de Carbono 2050, em que o debate acerca do contributo da floresta
para a neutralidade carbónica foi totalmente dominado pelos interesses das
celuloses e dos defensores de grandes regadios (e o interesse das celuloses em
começar a regar eucalipto já é notório e público).
O absurdo de defender a queima de biomassa florestal
como medida de mitigação das alterações climáticas em Portugal é um exercício
muito esforçado para esconder realidades: a enormidade dos incêndios
florestais, a evidente desflorestação, a escassez de água e o predomínio total
no território nacional de plantações de espécies exóticas e invasoras.
De acordo com os dados do Instituto de Conservação da
Natureza e das Florestas, só entre 1 de Janeiro de 2016 e meados de 2017 (a 30
de Junho) foi validada e autorizada a expansão da área de plantações de
eucalipto em novos 5657 hectares. Ou seja, o actual Governo é responsável por
57% das novas áreas de eucaliptal validadas e autorizadas no âmbito do regime
jurídico aprovado em 2013 (a “lei dos eucaliptos”). Apesar da Estratégia
Nacional para a Floresta, aprovada em 2015, limitar a 2030 a área de eucalipto
em Portugal a 812 mil hectares, o facto é que, de acordo com a FAO, a área de
plantações de exóticas em Portugal ascendia, em 2015, aos 900 mil hectares.
É clara a tendência de envolvimento crescente dos
povoamentos florestais nos incêndios rurais. Desde a aprovação da Lei de Bases
da Política Florestal, em 1996, que essa tendência é crescente. O facto
regista-se apesar de o país se confrontar com uma situação de desflorestação,
ou seja, de mudança do uso do solo de floresta para outras ocupações,
maioritariamente para matos. Esta tendência crescente ocorre em simultâneo com
a redução da área de pinheiro-bravo, segundo os dados do Inventário Florestal
Nacional, e do crescimento da área de eucalipto (defendida esta última como
cultura de rentabilidade para os pequenos proprietários, embora os dados de
rendimento agrícola neguem esta ideia). Acontece, porém, que, mesmo neste
último caso, quanto maior a área de eucalipto, mais se regista o seu
envolvimento na área ardida total e na área ardida em floresta. Apesar de em
2017, sobretudo com os incêndios de Outubro, se ter identificado uma enorme
área de pinhal bravo ardido, onde o património do Estado assume destaque, o
eucaliptal terá atingido a maior área ardida até hoje registada em Portugal, na
ordem dos 90 mil hectares, superior ao registado em 2003. Se, em 1996, a área
de eucalipto estava envolvida em cerca de 3% da área ardida total e em cerca de
13% da área ardida em floresta, em 2016 as percentagens respectivas foram de
24% e 50% e em 2017 (dados provisórios) de 19% e 39%.
Não existe nenhum sumidouro de carbono quando ardem
áreas enormes de plantações florestais – o que existe é mais um grande
emissor de carbono. Essa é a realidade que nos é legada por áreas florestais
abandonadas e eucaliptizadas.
No
rescaldo dos incêndios do ano passado passou a estar na moda falar de queimar
biomassa para produzir energia, como se isso servisse para combater incêndios.
Não serve. Passou também a falar-se de biorrefinarias para transformar madeira
em combustível para meter nos depósitos dos automóveis, como se isso servisse
para, de alguma modo, combater incêndios. Não serve. Perante o enorme drama
humano e a destruição dos incêndios de 2017, o oportunismo tomou conta dos
acontecimentos e, em vez de se procurar soluções para resolver a questão dos
incêndios, procuraram-se novas maneiras de fazer dinheiro, com o enorme favor
do Estado. Tanto para a questão do combate às alterações climáticas como para o
combate aos incêndios florestais, a queima de biomassa é uma biofarsa.
Para
culminar este processo, a ideia mirabolante de criar um “novo Alqueva” no Tejo,
o chamado “Projecto Tejo”, ignorando olimpicamente os impactos ambientais
negativos que a intensificação agrícola associada ao próprio Alqueva está a ter
sobre o Alentejo. Não nos devemos iludir acerca da possibilidade de este
projecto vir a servir para regar eucaliptos para queima e celulose – é
seguramente parte do plano. O nível de ilusão acerca de rendimentos futuros
assume nos dias de hoje contornos criminosos: usar os nossos recursos em
declínio como a água, os solos e a biomassa para queimar só servirá para dar
dinheiro a meia dúzia de grupos económicos e consultoras. Não combaterá
incêndios, não conservará solos e água, não contribuirá de maneira alguma para
a descarbonização ou para combater as alterações climáticas. A única coisa que
faria tudo isso era criar e gerir uma verdadeira floresta, de múltiplas
espécies, múltiplos usos, apoio aos produtores e que servisse para sustentar
uma população rural.
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