Ainda
que nas últimas décadas se tenha vindo a atenuar o preconceito relativamente à
etnia, ao género e à orientação sexual, a verdade é que, em Portugal ainda nos
encontramos numa fase distante de se considerar que esses vínculos
discriminatórios estão completamente ultrapassados. Os sinais que vamos observando
todos os dias são positivos mas não os podemos embandeirar em arco porque o
ambiente social não lhes é muito favorável. A intolerância que se sente
relativamente aos que são diferentes, fomentada pela ideologia extremista de
direita, aponta exactamente no sentido contrário pelo que não está fora de
causa o surgimento de retrocessos. Por isso mesmo, a sociedade deve estar
permanentemente alerta para não ser apanhada desprevenida.
De
facto, vamos encontrando na comunicação social algumas chamadas de atenção que
constituem verdadeiros avisos dos perigos que nos rodeiam. Um exemplo é o texto
seguinte que constitui um interessante artigo de opinião (*) que transcrevemos
do “Público” de hoje.
“Opá, ‘tava lá no café, né? Depois chegaram três
gajos... um deles era preto... e sentaram-se lá a ver o jogo”, ouvi eu há
poucos dias, num eco tão frequente que se perpetua desde que me lembro de
existir. A história prosseguia para contar uma qualquer zaragata que veio a
tomar lugar e que, em nenhum momento, garanto eu ao leitor, envolveu a cor,
etnia ou qualquer aspecto cultural de onde pudesse ser o tal homem originário.
Nem tão pouco envolveu o próprio indivíduo! Ainda assim, fiquei a saber, porque
sim ou por razão nenhuma, que era negro.
A sociedade portuguesa, e ocidental em geral, encetou,
nas últimas décadas, enormes progressos relativamente ao esbatimento dos
vínculos discriminatórios de género, etnia e orientação sexual. No meu tempo de
vida, que sou até moço novo, assisti particularmente a profundíssimas
alterações sociais no que ao último aspecto diz respeito. Lembro os tempos de
há uma década, tempos em que a discriminação contra os “paneleiros” e “fufas”
era ubíqua nas escolas, sendo consentida e, arriscaria até, pontualmente
apadrinhada, por algum pessoal docente. Muito caminho se fez vendo que, no ano
passado, numa escola secundária em Aveiro, uma massa de alunos se elevou numa
manifestação de solidariedade e de coragem em defesa de duas raparigas que se
haviam beijado e que tinham sido, por isso, repreendidas. Louvável contemplar
que, contrariamente ao que teimam em prenunciar os mais antigos, o mundo não
está necessariamente perdido.
Contudo, há réstias. Réstias de medo, de desconfiança,
de desconhecimento, réstias de preconceito que resistem, pois os estigmas não
se extinguiram, tendo ficado apenas agrilhoados no silêncio pela pressão
social, que não permite hoje tão facilmente extravasar os tiques de ódio que
ainda subsistem. Como a necessidade de afirmar que o tal homem era negro,
vinculando-o forçosamente a um estereótipo de menoridade, ao enaltecer uma
característica simultaneamente inconsequente e, sabemos tão bem, indissociável
de séculos de rebaixamento de milhões de indivíduos que nasceram “inferiores”.
Admito até que este preconceito esteja de tal modo endoutrinado, por décadas de
um ferrete cultural racista, que quem o profere não racionalize
intelectualmente qualquer preconceito e diga que nada tem contra “eles” e que,
tomemos atenção, tem até amigos negros! Ainda assim, escolheu dizer-me que o
homem, que é certamente tanto mundo, era negro.
O
preconceito é um acto de três virtudes cardinais. De ignorância, porque
disserta acerca do desconhecido, alimentando fantasmas sobre pretensas
características de indivíduos que depois se fixam num enviesado adágio popular.
De preguiça, porque é um exercício tão mais leviano julgar e agruparmo-nos nos
padrões e gavetas mentais que criamos para entender e arrumar o mundo do que
nos esforçarmos para conhecer, perguntar, aprender e até dizer, eu errei. E de
profundíssima desumanidade, porque extingue toda a pessoa nas suas virtudes,
defeitos, ambições, medos, vida e história e redu-la a um fragmento caricatural
como uma cor de pele, um valor de peso, um género ou uma preferência sexual.
O
preconceito é como uma chaga parasitóide. Aloja-se, num secretismo de donzela,
num qualquer lado que desconhecemos e ali fica, se deixado, qual vírus paciente
e corrompedor, destruindo o melhor de nós e deixando “o outro” num lugar tão
distante de onde estamos. Um deles era preto? Talvez fosse e, contudo, é tal a
ironia que, pela frase, guardo tão mais sobre quem a proferiu que sobre a quem
se referia.
(*) Daniel
Catarino da Silva, estudante de biomedicina
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