Numa
altura em que passam 50 anos sobre os acontecimentos de Maio de 1968, muitos
textos evocam essa época muito marcante a nível mundial. Na realidade, entre o
muito que então rapidamente se avançou e a igual celeridade com que se recuou
em relação a muitas emblemáticas conquistas civilizacionais para a humanidade,
algo ficou de positivo.
Nos
tempos de ditadura que então se viviam em Portugal, sem os meios de comunicação
actualmente existentes, apenas uma minoria de afortunados tinha acesso ao
essencial dos acontecimentos que, posteriormente, eram transmitidos boca a boca.
Hesitámos
em deixar aqui o artigo de opinião que o sociólogo e deputado do Bloco, José
Soeiro (JS), assina no “Público” de hoje, onde o pano de fundo são ao
acontecimentos de Maio de 1968, devido à extensão do texto. No entanto, o
ângulo de análise e a qualidade da escrita rapidamente nos convenceram que
muitos frequentadores deste blog dariam por muito bem empregado o tempo que
gastariam na sua leitura.
1. Festival
juvenil anti-autoritário ou a maior greve geral da história da França? Uma
revolução cultural que não quis tomar o poder ou uma crise real do poder de
Estado? Momento crítico de aborrecimento dos baby-boomers com a
sociedade de consumo ou uma revolução nos costumes com efeito durável? “Ilusão
lírica” dos filhos da burguesia francesa ou sublevação juvenil e operária
contra a alienação? Insurreição hedonista precursora de um novo individualismo
liberal ou um ensaio geral de uma aliança anti-capitalista, anti-imperialista e
anti-autoritária capaz de fazer nascer outra sociedade?
A memória é sempre um campo de disputa sobre o modo
como inscrevemos no presente acontecimentos passados. Por isso, não nos
admiremos que, em momentos comemorativos, os vencedores do momento procurem
interpretar os acontecimentos à luz de uma continuidade histórica mais ou menos
forçada. Não nos admiremos, até, que cultivem esse sentimento de continuidade
para confirmar a ordem. A esta luz, a evocação dos 50 anos de maio oscilaria
assim entre a celebração nostálgica de uma festa estudantil e de um momento
feliz (maio morto, feito folclore) e a exaltação dos ganhos de autonomia
individual nascidos em 68 e plenamente realizados na sociedade tal qual ela
evoluiu até hoje (maio dócil, feito primeiro capítulo do capitalismo
pós-moderno). E, no entanto, a memória de maio é muito mais do que essas
caricaturas tristes. O seu potencial de recusa é refratário a essa ordem de
hoje. A história está longe de ter acabado.
2. Maio é,
evidentemente, uma revolta dos jovens e dos estudantes. Mas seria pouco
explicá-la como mera reação a uma moral sexual conservadora ou libertação do
desejo contra a repressão. Sim, isso esteve presente no início da revolta da
Sorbonne, em Paris. Mas não explica os milhares de estudantes em Berlim em
fevereiro de 1968 contra a guerra no Vietname ou os muitos mais depois da
tentativa de assassinato do dirigente estudantil Rudi Dutshcke, em abril desse
ano. Não explica 1968 no Brasil nem a marcha dos 100 mil no Rio de Janeiro, em
junho, depois do assassinato de um estudante. Não explica a combinação, no
Japão, da luta contra o imperialismo e contra a expulsão dos camponeses dos
terrenos do que viria a ser o novo aeroporto e o “assalto de Tóquio” pelos
estudantes japoneses em outubro. Não explica a ebulição antiguerra nas
universidades norte-americanas ao longo de 68 e os tumultos após o assassinato
de Luther King em abril. Não explica as dezenas de milhares de estudantes nas
ruas do México, em vésperas de Jogos Olímpicos, nem o massacre de Tlatelolco em
que centenas foram assassinados. Não explica, claro, a Primavera de Praga, o
projeto de um socialismo de rosto humano e des-estalinizado, a autoimolação do
estudante Jan Palach, em protesto contra a invasão da República Checa pela
tropas soviéticas. Nem explica o que se seguiu.
Antes de maio, na verdade, já a mobilização contra a
guerra do Vietname (que esteve aliás na origem do movimento 22 de março, em
Nanterre, e que aconteceu em fevereiro também em Portugal) exercera um extraordinário
efeito de contágio na juventude. E se recuarmos mais, temos o antecedente da
guerra da Argélia e dos seus efeitos de politização dos jovens solidários com a
Frente de Libertação. Em 68, o maio estudantil foi muito mais do que um
movimento sobre as condições do ensino, as relações de poder na Universidade ou
a vida juvenil. Foi internacional, anti-imperialista e antiburocrático. Em
França, esse maio foi também um encontro inédito: entre as universidades
ocupadas e a ocupação das fábricas.
3. Dez milhões de
trabalhadores em greve não é um pormenor. É o maior movimento social da França
moderna. Convocada depois das barricadas do dia 10 de maio no bairro da
Sorbonne, a greve começaria na segunda-feira seguinte. Nesse dia, 13 de maio,
centenas de milhares de estudantes e trabalhadores marcharam juntos nas ruas de
Paris e de outras cidades. A partir de 14, iniciam-se as ocupações de fábricas,
a começar pela Sud-Aviation. Milhares seriam ocupadas, por toda a França, nos
dias seguintes. A 20, a greve paralisa o país.
O maio operário nasce, em muitos casos, à margem das
estruturas oficiais de representação dos trabalhadores. Abrange todos os
sectores de atividade e dissemina-se por todo o território. Alarga-se às médias
e pequenas empresas. À greve aderem 70% dos trabalhadores do país, mas a
radicalidade do movimento grevista passa também pelas suas formas de
organização de base, pelo protagonismo da juventude operária, pelas
reivindicações que vão para além do salário e da negociação sindical. É a aspiração
de democracia e de representação, é o comité de bairro e a exigência de um
governo popular, são as perguntas que se fazem não apenas sobre como se exerce
o poder patronal, mas sobre os próprios fundamentos desse poder: como se
organiza a fábrica?; que leque salarial é justo?; por que não se proíbem os
despedimentos?; quem decide a produção?
A 6 de junho, o jornal comunista L’Humanité
fala sobre um “regresso vitorioso e em unidade ao trabalho”. Mas os resultados
da negociação de Grenelle, feita entre Governo e sindicatos, seriam chumbados
pelos trabalhadores na Renault-Billancourt. As conquistas no salário não foram
insignificantes, é verdade. Mas a aspiração desse maio operário não cabia toda
num acordo, por mais contrapartidas que se oferecessem para que se voltasse “à
normalidade”. Era uma brecha que se tinha aberto na própria ordem das coisas.
O maio operário e a greve dos dez milhões fez-se
contra as várias formas de alienação e de desigualdade, contra a dominação e a
reprodução da sociedade mercantil. Entre este maio e o maio estudantil, houve
quem quisesse erguer paredes e muros intransponíveis. Foi isso, aliás, que
começou por fazer o Partido Comunista, desde logo no famoso artigo de Georges
Marchais (que viria a ser secretário-geral, anos mais tarde), no dia 3 de maio,
sobre “os falsos revolucionários que querem dar lições à classe operária”. Mas
um e outro maio, apesar das diferenças de classe, tiveram momentos de encontro
e de solidariedade concreta entre ocupações, tiveram movimentos de aproximação
mútua que são irredutíveis à caricatura sobre a evocação estudantil de um
proletariado messiânico. Dos registos policiais dos presos nas barricadas de 68
no centro de Paris, por exemplo, não constam apenas os universitários: estão lá
também jovens operários, empregados de café, funcionários das lojas.
4. Para além do
maio estudantil e do maio operário, há ainda o maio libertário dos costumes,
para utilizar as categorias de Alain Badiou. Maio é também, pois, o nome dessa
efervescência cultural antiautoritária, o acelerador das transformações sociais
e culturais na afirmação da diversidade sexual e nas relações entre os géneros
(ainda que, em maio, a palavra seja dominada pelos homens), a crítica da vida
quotidiana (Lefebvre) e da “sociedade do espetáculo” (Debord), o início de uma
busca de novos sujeitos colectivos de emancipação e de uma potência
revolucionária no feminismo, no movimento LGBT, mas também noutros sectores
considerados menos integrados no capitalismo ou mais nas margens da sociedade
de controlo e do consumo: os migrantes (sujeito de eleição do operaïsmo
de Tronti e Negri na década de 1970), os presos (lembremo-nos de
Foucault e do Grupo de Investigação sobre as Prisões), os loucos (a
experiência da clínica La Borde, de Oury e Guattari e Deleuze)...
Este maio antiautoritário representou também um novo
fôlego na crítica das instituições (a escola, o hospital, o museu, o teatro, a
prisão...) e das modalidades de dominação no próprio interior das organizações
e movimentos revolucionários (sindicatos, partidos, associações...), da relação
vertical entre massas e vanguarda, das mil e uma formas de exercício do poder
nas relações intersubjetivas. Foi a procura, por exemplo, de formas pedagógicas
mais dialógicas (é em 1968 que se publica A Pedagogia do Oprimido, de
Paulo Freire), da transformação prática da arte popular (o Teatro do
Oprimido de Boal é apenas uma dessas experiências), de formas artísticas
capazes de quebrar hierarquias e fronteiras entre géneros (entre as quais o happening
ou a performance).
Este movimento, este maio, é evidentemente
contraditório, mas seria um equívoco resumi-lo a uma pura afirmação do
indivíduo contra as estruturas e os coletivos, inclusive no campo artístico. O
que seriam então, para usar a expressão de Blanchot, as “palavras de desordem”
feitas em conjunto, os textos escritos a muitas mãos, o elogio de uma arte
feita para intervir agora sem a pretensão da eternidade e sem autoria
individual, em forma de boletim ou panfleto, de cartaz ou jornal de parede, de graffiti
ou de aparição no espaço público?
5. Maio
sujeitou-se a muitas apropriações e declinações conflituantes. À Direita, há
quem tenha transformado as aspirações de autonomia na justificação para novas
formas de controlo e transmutado as aspirações de liberdade no elogio da
individualização e da mercantilização dos direitos e do trabalho. À Esquerda,
houve quem preferisse passar a definir a revolução, não tanto como um projeto
político, mas antes como um estilo, uma estética, um modo de subjetivação, o
campo transgressivo da micropolítica, fazendo nesse movimento uma espécie de
“eclipse da razão estratégica” (Bensaïd), numa variação muito peculiar do “fim
da história”, em que o refúgio na contracultura aparece, afinal, como uma
espécie de derrota por antecipação – resistimos ao capitalismo, mas já não
imaginamos que seja possível superá-lo enquanto sistema.
Mas maio não pode ser reduzido a estas apropriações,
como se o “espírito do empreendedorismo” de hoje pudesse ser encontrado nas
barricadas do Quartier Latin ou como se a subjetividade neoliberal fosse da
responsabilidade de quem se lançou à procura do impossível. A esperança de
maio, por mais que alguns dos seus protagonistas insistam numa visão
retrospetiva capaz de justificar os seus próprios percursos políticos de
conformação, não era a de uma libertação individual no reino da competição e da
mercadoria, mas sim a de uma emancipação coletiva dos indivíduos, a de um mundo
liberto do despotismo do mercado, da lei do interesse privado e do cálculo
egoísta.
Pela minha parte, prefiro a fidelidade a esta última
hipótese – que não venceu, mas que nem por isso deve ser eliminada do campo dos
possíveis. Onde maio é emancipação é porque foi esse lugar do encontro
improvável entre mundos sociais distantes e condenados a não se cruzarem, foi
esse momento em que se quebraram barreiras, em que aconteceu o contacto sem
intermediários entre estudantes e operários. Foram as ligações inesperadas, foi
a subversão das hierarquias dos lugares e das categorias de classificação do mundo.
Esse maio, inconveniente, não está esgotado.
6. A leitura de maio como um fenómeno
meramente cultural ou como uma simples expressão sociológica de uma crise de
gerações tende a torná-lo asséptico e a despolitizá-lo. Lembrar maio não é,
para mim, celebrá-lo ou lamentá-lo como preâmbulo do capitalismo de hoje ou
como fugaz momento lúdico e festivo. Pelo contrário, creio que precisamos, mais
do que nunca, de uma leitura histórica e política das brechas abertas por maio,
do horizonte de possíveis que ampliou. E sim (por que não?) celebrar. Celebrar
a convergência das revoltas contra a exploração capitalista, a opressão
colonial e o despotismo burocrático. Na verdade, ninguém tem nunca a última
palavra, continua a haver projetos estratégicos que não são apenas variações do
que existe, continua a haver conflito social, luta de classes, brechas que se
abrem nas contradições do presente. É preciso encontrá-las coletivamente.
Cinquenta anos depois, insistamos em imaginar outros caminhos. A emancipação –
como diria Bensaïd – não é um prazer solitário.
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