É perfeitamente certa a afirmação de que em
política não há amigos, mas interesses. Trata-se de uma verdade que nunca foi
desmentida pela realidade dos factos e daí não vem qualquer mal ao mundo. As
sociedades democráticas estão organizadas em partidos políticos que defendem os
interesses dos grupos sociais a que estão associados. Em Portugal também é
assim.
As pessoas com uma sólida formação política
sabem, ainda que algumas o escondam, que a esquerda se preocupa a defender os
interesses dos mais pobres e desprotegidos embora nem sempre de forma isenta de
erros.
Todos sabemos o papel da direita durante o
Governo PSD/CDS que fez recair sobre os mais necessitados o ónus da intervenção
da Troica em Portugal.
Em 2015, como resultado das eleições
legislativas, formou-se no Parlamento uma maioria de esquerda que,
ultrapassando conhecidas e antigas divergências, deu ao PS a possibilidade de
formar Governo, com o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda e do PCP. A
fórmula encontrada para colocar um travão à política austeritária da direita
deu os seus frutos que se traduziram numa melhoria das condições de vida dos
grupos sociais mais desfavorecidos, ainda que se pudesse ir muito mais além.
Da colaboração do PS com o PCP e BE,
resultaram benefícios para a maioria dos portugueses sem que qualquer destes
partidos possa ser criticado negativamente em relação ao trabalho que efectuou.
Também não seria espectável que PS, Bloco e
PCP se descaracterizassem durante a presente campanha eleitoral, depois da
colaboração que tiveram ao longo dos últimos quatro anos. Mas, o que também não
faz qualquer sentido é que o PS, por via da voracidade em torno da maioria
absoluta eleja agora o Bloco como alvo de todos os ataques, esquecendo que, sem
os bloquistas, não teria atingido o poder. Faz, pois, todo o sentido perguntar
por que razão, tendo o BE tantos defeitos, os “socialistas” aceitaram o seu apoio
parlamentar para governarem. A resposta é traduzível apenas por uma palavra, “oportunismo”
político, antes e agora. Só que, para se atingir objectivos políticos, ainda
que legítimos, não pode valer tudo. A população portuguesa irá facilmente
perceber que Costa elege o Bloco como inimigo principal porque teme que uma votação
forte neste partido seja o maior impedimento para o PS atingir a maioria
absoluta. O BE agradece estes ataques porque, como afirma um provérbio árabe, “só
se atiram pedras às árvores com frutos”.
Tendo como pano de fundo esta situação aqui
fica a transcrição do artigo que Fernando Rosas assina no “Público” de hoje,
onde destaca de forma particular as contradições do PS.
Estou de acordo com o que o
primeiro-ministro, António Costa, quis significar acerca da questão central que
se coloca nas próximas eleições legislativas: saber se o Partido Socialista tem
ou não maioria absoluta (ver entrevista ao Expresso de 24/8/2019). Dito de outra
forma: perceber se à esquerda (só nela existe essa possibilidade), há ou não
força social e política para impedir a governação absoluta do PS. E esse é, na
realidade, o centro da questão neste pleito eleitoral.
O PS e António Costa são prudentes na
formulação do seu apetite por
ir ao almejado pote da maioria absoluta. Disfarçam-no, todavia, sob
uma série de eufemismos que mais descobrem do que ocultam a ânsia afogueada de
lá chegar. Sabem que a evidenciação do propósito é eleitoralmente muito
embaraçosa. Ninguém esqueceu no país que as duas maiorias absolutas do
cavaquismo e a do PS de Sócrates se traduziram no abuso absoluto. Um partido
governante com maioria absoluta, ensina-nos o nosso historial recente desse
tipo de situações, acha-se dispensado de falar às pessoas, de prestar contas à
cidadania, de negociar e de debater dentro ou fora do Parlamento as suas
decisões, anula facilmente o contraditório, tende a controlar os media
em proveito próprio, ilude com muito maior facilidade a fiscalização possível
dos seus atos, fomenta quase inelutavelmente o compadrio e a corrupção a todos
os níveis. Ninguém se esqueceu em Portugal que as maiorias absolutas pretéritas
do PSD e do PS significaram arrogância e autoritarismo, privatizações
obscuramente negociadas dos sectores estratégicos da economia, ataques
devastadores ao emprego e aos direitos do trabalho, corrupção e promiscuidade
atravessando horizontalmente a banca, os negócios e a política, tudo a desaguar
no colapso financeiro, na troika e no memorando de
entendimento com ela preparado por aqueles dois partidos, a magna
carta da austeridade.
É, pois, natural que na citada
entrevista António Costa tente não dizer claramente ao que vem,
ainda que o propósito seja evidente: regressar a uma maioria absoluta e
declarar guerra preventiva a quem a possa política e eleitoralmente
obstaculizar. Para esse efeito, e partindo da evidência que as direitas estão
impotentes para assumir tal risco, o secretário-geral do PS debruça-se sobre as
esquerdas. E, num exercício não isento de alguma desfaçatez, não hesita em
destratar os parceiros de
ontem (que afinal viabilizaram a governação socialista e as suas
benfeitorias), agora reduzidos pelo primeiro-ministro ou a muletas de apoio ou
a adversários a neutralizar. Com paternal condescendência, António Costa passa
um atestado de “bom comportamento” ao PCP, o que não pode deixar de soar como
algo insultuoso aos ouvidos de um partido fortemente empenhado em demarcar-se
do PS e do seu Governo. E assim, reduzido, aliás injustamente, ao estatuto de
parceiro menor e obediente. Ao contrário, o Bloco de Esquerda é eleito
adversário preferencial, implicitamente apontado como força política suscetível
de congregar os apoios dos muito defensores da “geringonça” que não desejam o
regresso de uma maioria absoluta do PS. E por isso Costa despeja-lhe os
anátemas de partido “inorgânico”, sequioso de mediatização e inseguro nos
compromissos: ninguém diria que durante uma legislatura o Governo contou com a
sua colaboração para existir e atuar como governo…
Não só por isso as acusações são algo
surpreendentes pois parecem obnubilar o sentido das realidades do
primeiro-ministro: quando fala da sede mediática estará a esquecer-se do
secretário-geral do PS que se dedica por estes dias a percorrer de
norte a sul a EN2 para aparecer, não só ao “meio-dia”, mas em todos
os noticiários de todas as televisões, como o improvável “amigo do interior”? E
quando na referida entrevista insinua a insegurança dos compromissos não
ocorrerá a António Costa que foi o Governo do PS, pressionado pelos grandes
interesses ou pelos patrões, que à última da hora deu o dito por não dito
relativamente a compromissos formalmente assumidos no Parlamento em casos como
a tributação das rendas da energia, a TSU dos patrões, a legislação laboral ou
a lei de bases da saúde
Nem se diga, como sugere António Costa
ao Expresso, que o risco de recessão económica enfatiza a necessidade de
um governo “seguro”, isto é, de maioria absoluta. O certo é que não há nada de
menos seguro para o emprego, para os direitos de quem trabalha, para os
pensionistas, para o Estado Social, do que um governo de maioria absoluta do PS
ou da direita a gerir uma eventual crise. Pela simples razão, como a história
recente da Europa demonstra (em França, na Alemanha, na Itália, em Espanha…),
que nada de essencial separa a austeridade dos partidos socialistas no poder da
dos governos da direita. Afinal foi o Governo do PS e do Eng.º Sócrates que
chamou a troika e se entendeu com ela. O Governo PSD/CDS agravou o que
já fora começado. Se há situação em que o condicionamento à esquerda da
governação se torna mais urgente e necessária é precisamente para enfrentar com
equilíbrio e justiça social uma situação de crise.
Dito isto, devo dizer que me confesso
apoiante da experiência política que foi a “geringonça”, a despeito
das suas limitações e incompletudes. Desejaria que o governo a sair das
próximas eleições pudesse levar a cabo muito do que não foi feito no domínio
dos direitos do trabalho, na resposta à urgência climática, no reforço dos
serviços públicos essenciais, na recuperação nacional de setores estratégicos
da economia, na melhoria das condições salariais e do nível de vida. Para que
tal aconteça, entendo ser indispensável dar dois passos. O primeiro, não haver
uma maioria absoluta de nenhum partido, designadamente do PS. O
segundo, constituir as forças à esquerda do PS como garantia eleitoral e
política da continuidade, aprofundamento e alargamento de políticas de justiça
social no sentido das que estes partidos viabilizaram na legislatura agora
finda.
Veremos se é possível criar uma relação de forças que permita ir por aí.
Afinal, o povo é quem mais ordena.
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