Algumas vozes se têm levantado por estes
dias, criticando o “silêncio” do Bloco relativamente à greve dos motoristas de
matérias perigosas. Isto não é verdade pois, para além da tomada de posição de
Catarina Martins, outros dirigentes do Bloco se vêm pronunciando paulatinamente
em relação a esta situação, não deixando quaisquer dúvidas sobre a razão dos
motoristas de matérias perigosas independentemente do modo como organizaram a
sua forma de luta, no mínimo desastrada, dando pretexto a uma contrainformação
muito bem orquestrada pelo patronato com forte apoio do Governo. Não se pode ir
para uma “guerra” destas, deixando o adversário utilizar as armas mais potentes…
Como muito bem refere Pedro Filipe Soares (PFS)
em artigo de opinião que assina no “Público” de hoje, a greve ainda em curso, “fez
emergir um conjunto de perplexidades” que, inacreditavelmente se encontravam
escondida debaixo do tapete. “Como se chegou a esta situação?”, refere a certa
altura PFS, uma questão que já deve ter vindo à mente de muitos portugueses, à
medida que conhecem a cronologia dos factos.
Diz o povo que às vezes “há males que vêm
por bem” e esta greve está nessa linha de pensamento porque teve o mérito de
trazer à tona um conjunto de factos genericamente relacionados com a
distribuição de produtos petrolíferos.
A virtude de PFS é conseguir explicar em
poucas palavras a situação a que se chegou no sector da distribuição dos
produtos petrolíferos que levou à injustiça salarial que agora estão a viver os
motoristas. De realçar ainda, a denuncia do indecoroso papel do Governo como
árbitro de um conflito em que tomou claramente a defesa de uma das partes,
chegando ao ponto de fazer o papel de porta-voz dos interesses patronais. Uma
vergonha!
A greve dos motoristas de matérias
perigosas fez emergir um conjunto de perplexidades. A primeira, que se coloca
ainda antes de assistirmos às imagens das filas intermináveis de carros em
postos de abastecimento ou à greve propriamente dita, é sobre a organização de
todo o setor.
Alguém acha normal que as empresas
petrolíferas, com centenas de milhões de euros de lucros por ano (só a Galp
teve um lucro de 707 milhões em 2018), quase não tenham motoristas de matérias
perigosas nos seus quadros de pessoal? Mais, alguém explica como é que toda a
operação de distribuição deste setor está dependente de jornadas de trabalho de
14 horas? Ou, ainda, que o salário dessas longuíssimas jornadas de trabalho
quase toque o valor do salário mínimo, ao que se adiciona um conjunto de
parcelas inventadas para fugir a pagamento de impostos ou contribuições para a
Segurança Social? Sim, este país real é o faroeste da responsabilidade social
das empresas e os lucros milionários só comprovam que a ganância é como o universo,
não tem fim.
Como se chegou a esta situação? O resumo
é simples: privatizou-se uma empresa estratégica para o país, dando a uns
poucos os lucros que deveriam ser de todos; externalizou-se parte da operação
recorrendo-se ao outsourcing para as atividades que anteriormente eram
desempenhadas pelos trabalhadores do quadro de pessoal, esperando que a selva
do mercado trouxesse a desregulação laboral que ansiavam - o que aconteceu com
os motoristas de matérias perigosas; os motoristas passaram de trabalhadores a
empreendedores, incentivados a criarem a sua própria empresa - ou contratados
por outros nessa situação - perdendo direitos pelo caminho. Ao longo deste
processo os lucros aumentaram, a riqueza ficou ainda mais concentrada nos
acionistas, e os salários caíram. É motivo para indignação? Claro que é.
Esta introdução explica o contexto que
nos trouxe às lutas de hoje. Para quem achava que esta história era apenas
entre interesses privados, fica claro como o poder público está na sua origem e
dela nunca esteve desligado.
Isso ficou bem claro neste processo. O
Governo dizia querer fazer a arbitragem do conflito, mas não mostrou
distanciamento para ser um bom árbitro. O primeiro-ministro disse que o Governo
se preparou para a greve, mas em nenhum momento isso passou por questionar a
atuação das empresas.
Não deveria a Autoridade para as
Condições do Trabalho (ACT) ter investigado e punido as empresas pelas abusivas
jornadas de trabalho, excessos de horas extraordinárias e pela manifesta
desadequação dos seus quadros de pessoal? Não deveria a Autoridade Tributária
ter investigado a contabilidade criativa que soma complementos ao salário para
subtrair aos impostos devidos ao Estado? E não deveria a Segurança Social ter
investigado essa mesma folha salarial que retira valor às pensões futuras dos
motoristas? Dever, deviam todos, mas não fizeram. Por outro lado, a preparação
do Governo terá sido a da folha excel dos serviços mínimos e do parecer
jurídico da requisição civil. São precisas mais provas para concluirmos do
lado que o Governo está?
Até a jornada de trabalho de oito horas,
cuja luta já leva dois séculos e é um dos pilares da cultura de esquerda, foi
negada pelo ministro do Ambiente. Disse ele que “ninguém pode ser obrigado a
trabalhar para além do horário de trabalho, mas não digam que o horário de
trabalho é de oito horas por dia, porque pode ser de 60 horas”. A bússola
política entrou em desnorte e só isso explica que um Governo que se diz de
esquerda tenha criado um precedente grave de abuso da lei do trabalho e de limitação
do direito à greve.
Tudo isto salta à vista e, para o ver, não precisamos de concordar com a
convocatória da greve, basta algum bom senso e sentido de justiça. A exigência
do tempo é de mais diálogo e menos arrogância, de mais negociação e menos provocação.
E não está tudo na mesma, até porque os benefícios das lutas já se começam a
conhecer. Apesar de ainda não serem públicos os detalhes, será inegável que o
acordo alcançado pela Fectrans resulta do atual contexto e tem nele a sua
marca. Que os avanços sejam para todos, será o mínimo que se exige. Que a
mediação agora pedida seja imparcial é outra condição essencial.
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