Estava este lindo Governo posto em
sossego, convencido de que jamais alguém que não pertencesse ao leque
esquerdista e radical contestaria de forma consistente e organizada o processo
austeritário em curso, quando um grupo de “gente” com uma “agenda política”
escondida teve o topete de contestar através de um manifesto um caminho que
Passos e Portas estão a atapetar para os portugueses, ao encontro de manhãs
radiosas…
Falando mais a sério, o grupo dos 70 – na
realidade, 74 – signatários, onde está abrangido o leque ideológico da esquerda
à direita, teve o discernimento suficiente para colocar de lado as suas divergências,
convergindo no que é essencial para o país neste momento. O que há de novo no
manifesto dos 70 é ter sido possível um consenso deste tipo numa altura crucial
da vida dos portugueses.
Como se vem percebendo, o Governo e os
seus apoiantes na comunicação social viram, de um momento para o outro, ser
estragado o arranjinho que tão laboriosamente vinha a ser tecido no sentido de
convencerem o povo português da inexistência de alternativas à política de
empobrecimento acelerado do país.
O artigo de opinião, que Pacheco Pereira assina
no Público de ontem, constitui um forte contra-ataque aos mais desbragados,
raivosos e desesperados insultos dirigidos ao manifesto dos 70 signatários.
Embora um pouco longo, vale a pena lê-lo.
É difícil imaginar tanta
raiva, tanta vontade de calar, tanto desejo de pura exterminação do outro, como
aquele que se abateu sobre o manifesto dos 70 signatários a pretexto da
reestruturação da dívida, uma posição expressa em termos prudentes e moderados por
um vasto grupo de pessoas qualificadas, quase todas também prudentes e
moderadas.
Nem isso poupou os seus
signatários a uma série de insultos, acusações ad hominem, insinuações e o que mais
adiante se verá. Sobre eles caiu a excomunhão que retira os seus nomes do
círculo de ferro da confiança do poder.
Pelo contrário, alguns dos
que os atacam ganharam o direito de lá entrar, e os que já estão lá dentro
viram reforçada a confiança que lhes permite uma vida almofadada dos custos da
crise. São os “responsáveis”, discordam às vezes no secundário, mas portam-se
bem. Os 70, pelo contrário, portaram-se muito mal. Num mundo cada vez mais dos
“nossos” e dos “deles”, bastante parecido com o paradigma marxista da luta de
classes, os signatários cometeram vários pecados mortais, e ficaram do “lado
errado”. É com eles que estou e é com eles que quero estar, não tendo assinado
o manifesto apenas por incúria minha em responder a tempo ao convite que me foi
feito. Mas é como se o tivesse assinado, por isso incluam-me na lista dos
insultos, que já estou habituado.
Veio ao de cima tudo, a
começar pelo primeiro-ministro, que os tratou de essa “gente”, ou porque tinham
uma “agenda política” ou porque eram “cépticos” por natureza, inúteis para o
glorioso esforço nacional de empobrecer como programa de vida. O manifesto era
“antipatriótico”, com um timing
inaceitável, a dois meses da “libertação” de 1640, feito pelos “culpados” do
esbanjamento, pelos “velhos” a defenderem os seus privilégios, pelos defensores
do statu quo
dos interesses instalados, pelos “jarretas”, pela “geração errada”. O seu
objectivo escondido, ao assinarem o manifesto, é outro, é “manter o modelo de negócio
que temos, o Estado que temos, e atirar a dívida para trás das costas”, escreve
António Costa em editorial do Diário
Económico. José Gomes Ferreira é mais claro: “Estará a vossa iniciativa
relacionada com alguns cortes nas vossas generosas pensões?”
Os argumentos ad hominem
abundam. Alguns dos signatários que são de direita, um bom exemplo é Adriano
Moreira, passaram a ter que ser de esquerda, o que é um modo muito interessante
de lhes recusar a identidade, esvaziá-los do que foram toda a vida, para
substituir essa identidade por aquilo que é, na sua pena, um anátema: “Já cá faltava um manifesto,
de espectro partidário amplo, mas com uma ideologia única, de Esquerda”,
diz, de novo, um editorial de António Costa no Diário Económico.
Cada vez mais se generaliza
em Portugal a idade como insulto, diminuição, culpa, e todos são “velhos” por
associação. Falta-lhes a desenvoltura dos “jovens”. José Gomes Ferreira
pergunta: “Que tal
deixarem para a geração seguinte a tarefa de resolver os problemas gravíssimos
que vocês lhes deixaram? É que as vossas propostas já não resolvem, só agravam
os problemas. Que tal darem lugar aos mais novos?” De facto,
troquem Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix, Vítor Martins, Sevinate Pinto, o
presidente da CIP, Capucho, Sampaio da Nóvoa, Braga da Cruz, Gomes Canotilho,
Manuel Porto, Teresa Beleza, e tantos outros, pelos “mais novos”, Relvas,
Arnault, Marco António, Passos, pelos yuppies
das consultoras financeiras que antes vendiam os swaps, e agora iam negociá-los para
o Governo, pelos jovens lobos dos escritórios de advogados que fazem todos os
negócios do Estado e vice-versa, sob a batuta de alguns velhos “que estão lá
sempre”, pelo jovem que era para ser propagandista do Impulso Jovem, pelos
gestores desempoeirados que usam o Twitter todas as horas e que circulam de
cargos políticos para a Caixa, para a RTP, para Angola, dos ministérios para as
empresas do PSI-20, ou aqueles que os chineses empregam para manter um link, útil, mesmo
que caro. Manuela Ferreira Leite é “velha”, Catroga é novo. “Que tal darem lugar aos mais
novos?”
Nos comentários dos blogues
pró-governamentais, ou seja, no fim da cadeia alimentar, espuma-se de ódio
junto com erros de ortografia, alguns dos quais eu corrijo para se perceber,
outros ficaram: “Este
tipo de "notáveis" (…) sinceramente mentem nojo. Concordo em pleno
com o nosso primeiro-ministro com o facto de hoje em dia já nem sequer consegue
responder a este tipo de escumalha que hoje em dia aparece na comunicação
social, parlamento em fim....por todo lado”; “foi uma ideia idiota que passou
pela cabeça de alguns”; “infelizmente
estamos já habituados a que figuras da direita se mudem para a ideologia da
esquerda irresponsável vá-se lá saber a troco de quê, ou talvez fácilmente se
saiba...(…) São gente golpista, que facilmente vende a alma e a dignidade.” E
estes são alguns comentários reproduzíveis, a maioria é puro insulto soez.
A imprensa económica teve
nesta fronda contra o manifesto um papel central, enfileirou editoriais
furiosos e notícias com títulos críticos sobre como o manifesto de nada valia e
como felizmente ninguém ouvia estes “irresponsáveis”, repetindo os argumentos
do antipatriotismo, do “timing
errado” que sairia “caro” ao país, caso alguém “ligasse” ao manifesto, que
deitaria abaixo o adquirido pelos “sacrifícios” dos portugueses, como disse o
primeiro-ministro e eles glosam. José Gomes Ferreira vai mais longe – se as
coisas correrem mal, a culpa é vossa: “Mesmo
sendo uma proposta feita por cidadãos livres e independentes, pela sua
projecção social poderá ter impacto externo e levar a uma degradação da
percepção dos investidores, pela qual vos devemos responsabilizar desde já. Se
isso acontecer, digo-vos que como cidadão contribuinte vou exigir publicamente
que reparem o dano causado ao Estado.” A mensagem essencial é “saiam da frente”,
a mesma que está na capa e no título de um livro de Camilo Lourenço, que achava
bem que houvesse um novo resgate porque isso “disciplinaria” os preguiçosos dos
portugueses.
O que é que tocou esta corda
hipersensível de governantes, jornalistas da imprensa económica, homens da
banca, alguns empresários e os seus agentes na ideologia “orgânica” do
“ajustamento”? Primeiro, voltar ao bom senso e deixar os revolucionarismos de
“mudar Portugal”, mostrar que há uma política alternativa, que pode ser
difícil, mas é muito mais realista do que a política actual, ou seja, que há
alternativas. E, pelo caminho, revelar a grande hipocrisia em que assenta a
política governamental, e em nome da qual os portugueses têm vindo a ter a vida
estragada: é que para se pagar a dívida, tem que haver folga para o crescimento
económico e qualquer outra solução é pura e simplesmente irrealista. A questão
é que daqui a uns anos, quando tudo isto desabar, nenhum destes corifeus
políticos dos “mercados” vai estar por cá, mas a sua herança estará.
Segundo, que essa alternativa
implica uma nova forma de estar na Europa, ou seja, responsabiliza-nos pela
acção e não pela submissão. É como num velho ditado gaullista sobre os
comunistas: “Só fazem aquilo que lhes permitimos que façam”. E como nós
permitimos tudo, fazem tudo. Na Europa é-se mais realista, incluindo nos
“mercados”, do que se pensa e seja porque nós actuamos, ou seja a reboque do
que pode acontecer na França, Itália ou Espanha, a política vai mudar. Só que,
quando mais tarde Portugal o reclamar como membro de parte inteira da União,
mais estragado estará o país, maior será o preço.
Terceiro, o manifesto revela
que o único consenso transversal existente hoje na vida pública portuguesa, é
exactamente aquele que põe em causa a actual política do Governo e dos seus
apoiantes. O outro “consenso” assenta num rotativismo entre PS e PSD, obrigados
a um pacto que impõe uma política “única” e a aceitação e institucionalização
de um colaboracionismo face a uma Europa que pode aceitar “manter-nos”, mas com
rédea curta e disciplinados. É apenas a blindagem da actual política em
eleições, para que, quer se vote no PSD ou no PS, tudo continue na mesma. Esse
seria um enorme risco para a democracia.
Este surto de
raiva, com laivos claramente censórios, não me surpreende. Estava à espera
dele, na sua magnitude e violência. E não vai acabar, vai-se tornar endémico.
Ele é o efeito a curto prazo de uma política que se assume para vinte ou trinta
anos de empobrecimento, centrados num único eixo: pagar aos credores, obedecer
aos mercados. Essa política não pode ser conduzida em democracia, só pode
existir com base num regime autoritário.
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