No
blog que tem no Público, Francisco Louçã assina hoje um texto de grande
qualidade – como é seu timbre – que reproduzimos a seguir. Afirma ele, com toda
a propriedade, que “a Europa tem medo de todas as eleições”. Aliás, esta Europa
abomina a democracia e disso é prova a pouca importância que dá à vontade
manifestada livremente pelos povos que a formam quando os seus resultados não são
conforme aos interesses do neoliberalismo dominante. Todos os dias temos a
prova de que decisões da maior importância para as populações europeias são
tomadas por entidades não eleitas, como se fossem donos disto tudo, sem darem
cavaco a ninguém. E os resultados estão à vista por todo o lado.
Ao
contrário da maioria dos comentadores políticos, Louçã é da opinião que a calma
dos “mercados”, em Itália e no Reino Unido, é o que deve assustar”…
Calma.
Os prognósticos do apocalipse eram um pouco exagerados. Vinham de todas as
partes, é certo: os opositores do Brexit anunciavam a catástrofe se o Reino
Unido escolhesse sair da União Europeia, muitos continentais suspiravam por um
momento clarificador que iluminasse os erros da instituição europeia. E, no
entanto, “os mercados”, o termómetro dos nossos dias, não tugiram nem mugiram.
Nem há recessão no Reino Unido, nem os capitais fugiram, nem a União desbancou.
O
mesmo em Itália. O referendo deu uma maré contra Renzi e os seus planos de
concentração de poder torcendo os resultados eleitorais (ele que é
primeiro-ministro sem ter ido a eleições), mas “os mercados” mantiveram-se na
sua. Resumindo: o Brexit ainda fica por mais uns tempos e Itália
não é o Brexit.
O
problema é a partir daqui. Porque, calma, Itália não é o Brexit que não é nada
que assuste, e depois França não é o Brexit nem é Itália, a Áustria é um
sossego, a Holanda não é França, a Alemanha não é a Holanda, todos os casos são
diferentes e todos são o mesmo problema: a União, como Saturno, está a devorar
os seus filhos. Calma, portanto, mas atenção que isto é ainda pior do que
parece.
Sai
Cameron e sai Renzi. Repare na coincidência: ambos tinham grande maioria
parlamentar. Não foram as instituições que lhes faltaram, foi o povo, ao ponto
de, iludidos pela tentativa cesarista de um referendo, terem recorrido em ambos
os casos a jogos políticos que precipitaram a sua queda. Depois, sai Hollande e
sairá provavelmente Dijsselbloem ou quem o segura e logo veremos quem mais.
Saturno vai atrás de todos os seus filhos, metódica e gulosamente.
De
facto, a UE já não tem liderança visível. Tem uma chefia relutante e prostrada,
Merkel, que, depois do fracasso do acordo com a Turquia sobre os refugiados, se
retirou para cuidar das suas eleições (como Costa lembrou há dois dias, nada se
fará na Europa até Outubro de 2017, quando se votar na Alemanha). A UE tem
ainda bombeiros incendiários nos países de Leste, tem cimeiras “refundadoras”
todos os semestres, tem discursos desconexos e, na falta de tudo o mais, tem
apelos aos “valores” para comover os crentes. Essencialmente não sabe o que
fazer, desde que não faça nada.
Nesta
paralisia, Saturno é o perigo: o que devora os governantes é a irrelevância e é
portanto o tempo que passa. Perdida a capacidade de responderem no plano
nacional à crise económica, ficaram reféns das agências de rating; desistindo
da democracia parlamentar para votarem orçamentos, assentaram em regras sem
legitimidade; reduzindo a política à arte da espera por um milagre, ficaram
reduzidos ao espectáculo. E o espectáculo não basta para entreter todo o dia.
Por
isso é que a calma dos “mercados”, em Itália e no Reino Unido, é o que deve
assustar. Prolongar a agonia de uma recuperação medíocre que deixa os jovens no
desemprego, virar os olhos às guerras do petróleo e aos muros contra os seus
refugiados, essas opções agravam divisões, desconfiança e corrosão social, ou
seja, são o trabalho de Saturno.
A
União destrói-se por dentro, porque é divergência e não é União. Ou seja, a
calma europeia é somente medo. Medo de que já este fim de semana seja preciso
injectar uns milhares de milhões no Monte dei Paschi di Siena, medo de que
depois venha o Unicredit, medo de que o Deutsche Bank dê de si, medo do dominó.
Mas, mais do que tudo, a Europa tem medo de todas as eleições, foi a isto que
desceu.
A diferença é esta: já houve
Berlusconi e Sarkozy no Conselho Europeu, e com Trumps avant
la lettre a
coisa ia bem, desde que os tratados se empinassem para impor as regras do euro;
agora o vírus da desconfiança dilacera os regimes, desfaz os partidos do
pós-guerra, tornou-se um calvário de desmantelamento, é o trabalho de Saturno.
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