Das
partes em confronto na guerra da Síria venha o diabo e escolha qual delas é a
pior. Estamos perante uma daquelas situações que podem ser pintadas a preto e
branco. Só há maus e bons. Do lado dos maus estão todos os campos militares,
sem excepção, enquanto do lado dos bons estão as populações civis, o pessoal
médico que foi resistindo aos bombardeamentos e, de um modo geral, todos
aqueles que protegeram as vítimas.
Em
Alepo, estamos perante mais um exemplo de “outros crimes desta dimensão” como
muito bem lembra Francisco Louçã hoje no Público e onde salvar a população
civil é o objectivo prioritário neste momento. De resto, no que diz respeito à parte
militar, a confusão reinante leva a que os Estados Unidos apoiem “uma força
militar do tipo da Al Qaeda” tal como já tinha acontecido no Afeganistão, sem
que as suas consequências tenham servido de lição aos americanos. Estamos perante
um barril de pólvora rodeado de chamas por todos os lados…
Em Alepo, a devastação da
cidade lembra outros crimes desta dimensão e talvez por isso suscite estes
momentos de emoção: isto é o que já vimos ou de que nos lembramos. Alepo é
Faluja, ou os campos palestinianos de Sabra e Chatila, ou Grozni, ou Srebrenica,
ou Gaza, ou também Varsóvia ou Guernica, os lugares onde um manto de bombas
destroçou a vida das populações, alvos e reféns da guerra mais suja. Mas Alepo
é também a nossa contemporânea Mosul, depois da chacina dos Yazidis pelo Daesh
e onde os civis continuam aprisionados. Alepo é uma das vergonhas do século XXI
e não é única.
Por
isso, contra qualquer calculismo de alinhamento político nestes campos
internacionais em que naufraga a razão, uma palavra de aviso: a única questão
decisiva que está em causa é saber se a ONU consegue ajudar a proteger a
população civil, ou se os vencedores da batalha, Al-Assad e Putin, permitem a
salvação destas pessoas, ou se as milícias que governaram a cidade aceitam as
garantias essenciais para a retirada das pessoas. A população é a única parte
da guerra civil que não é guerra. Salvá-la é uma fronteira para a humanidade.
De
resto, prudência. Nenhum jornalista independente conseguiu ter acesso a Alepo e
não se sabe o que lá se passa. Prudência ainda, pois na Síria nada é o que
parece. As mais improváveis alianças fazem-se e desfazem-se numa guerra em que
a selvajaria é sempre maior do que o que conseguimos imaginar. Portanto, os
únicos heróis são a população civil, ou o pessoal médico que resistiu aos
bombardeamentos de Alepo, ou os que protegeram as vítimas. Nos dois campos
militares, só o horror se confronta com o horror.
As
milícias rebeldes são uma cornucópia de grupos políticos e de chefes militares
cujo projecto é a destruição da Síria e a sua partição em protectorados. Será
certo que, em 2014, o Daesh foi expulso da província, mas é um grupo que foi
próximo da Al Qaeda, que tomou o nome de
Al-Nusra e depois Jabhat Fateh Al-Sham, que dirige as operações militares em
Alepo ao lado de milícias pró-turcas e outras. Portanto, ver os
Estados Unidos a apoiar uma força militar do tipo da Al Qaeda só será
surpreendente para quem não se lembre da história do apoio de Washington aos
Talibans no Afeganistão (e portanto à Al Qaeda nas suas origens), durante a
ocupação russa. E depois temos a Arábia Saudita, o Qatar, o Egipto, a França e
a Turquia, e, sem pasmo, Israel, a apoiar estas milícias. Alguns dos piores
inimigos juntam-se nesta empresa.
Do
outro lado, a Rússia e o Irão, as duas potências emergentes no Médio Oriente,
mas também a extrema-direita europeia com Le Pen à cabeça, ou Fillon, a
garantirem a sobrevivência do regime de Bashar-al-Assad. Mas, como lembra um
jornalista veterano da região, Washington já utilizou os préstimos de Al-Assad
enviando-lhe prisioneiros da guerra iraquiana, para serem torturados
nas prisões que agora a diplomacia norte-americana denuncia. O homem de Damasco
era até há pouco um parceiro fiável. A política nem sempre é o que diz ser.
E
depois, para confundir ainda um pouco mais o cenário, temos Trump, amigo de
Putin, a tomar posse dentro de poucas semanas, razão para a precipitação da
ofensiva militar do regime sírio, que quer conquistar a zona ainda antes da
cerimónia de Washington. De todos os pontos de vista, Al-Assad, Putin e os
governantes de Teerão são portanto os vencedores da batalha de Alepo, onde
tinham toda a superioridade militar (as milícias não têm tanques, nem aviões,
nem mísseis anti-aéreos). Foram eles que salvaram a família Al-Assad quando em
2011 multidões de jovens invadiram as praças, reclamaram a queda do regime e
foram massacrados.
Assim sendo, prudência. Os
campos desta guerra são tenebrosos. Salvem-se as vítimas de Alepo, agora é o
que importa.
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