Com
uma certa dose de ironia que uma situação destas reclama, o autor (*) do
seguinte artigo de opinião que transcrevemos do Público desta quarta-feira
aborda o processo criminal relativo à alegada ocultação da dívida pública
levada a cabo pelo Governo Regional da Madeira, entre 2003 e 2010, em que um
dos principais arguidos era Alberto João Jardim.
Para
o comum dos cidadãos, já não é novidade nenhuma que processos judiciais deste
tipo fiquem, como diz o povo, “em águas de bacalhau”, depois de investigações e
mais investigações. É sempre assim, como não havia de ser desta vez, ainda por
cima, envolvendo uma raposa matreira como o ainda poderoso ex-presidente do
Governo Regional da Madeira… (os sublinhados são nossos)
Como se escrevia neste jornal, a
propósito da investigação criminal e respectivo processo judicial sobre a
“ocultação de dívida pública” pelo Governo Regional da Madeira entre 2003 e
2010, até terá sido apurada a existência de “software específico
para as fazer desaparecer da contabilidade nacional”. “As” da frase em causa
são facturas, bem entendido, facturas passadas por construtores civis e pagas
pelo Governo Regional da Madeira, mas que afinal não existiam para o erário
público.
Não haverá julgamento: a juíza de
instrução criminal terá entendido não haver lugar a responsabilidade criminal
dos arguidos em causa, designadamente de Alberto João Jardim. Mas mandou
extrair certidões de conteúdos deste processo para o Ministério Público
investigar... Investigar o que já investigou? Investigar o que mandou arquivar
em 2014 nesta matéria? Ou, depreende-se da decisão judicial, investigar agora
de forma acertada e capaz de conduzir a um julgamento? Recorde-se que, em
Outubro de 2014, a Procuradoria-Geral da República decidiu-se pelo arquivamento
deste inquérito, após mais de três anos de investigação, supostamente por falta
de provas.
Note-se que estamos apenas a
falar de 1,1 mil milhões de euros de dívida contraída pela Região Autónoma da
Madeira e ocultada até ao limite, ou seja, até ter de ser “salva”
financeiramente pela República em 2011. E estamos a falar de dívida ocultada de
forma reconhecida, invocando frases públicas de Alberto João Jardim. Será que o
valor em causa não justifica uma investigação adequada? Será que se receia a
dimensão política dessa investigação? Será que perante a existência de software
ao serviço de entidades públicas, cuja finalidade é reconhecidamente ocultar
despesas públicas, persistem dúvidas sobre a finalidade que está em causa?
Pode haver uma explicação simples isto e
que não causa escândalo. É necessário tomar em consideração que Alberto João
Jardim também é doutor honoris causa pela Universidade de São Cirilo, de
Malta – solidariedades insulares? –, uma universidade que ninguém reconhece
como tal e que consegue ser provavelmente a única instituição de ensino que não
indica qualquer curso oferecido no seu website ou sequer qualquer
professor. Um país de fraca reputação académica e científica, como a Itália, experimentou
até classificá-la como uma universidade “fictícia”.
Mas, recorde-se, no final da Idade
Média, um doutor, em regra, apenas poderia ser julgado pela jurisdição especial
universitária, conducente à jurisdição eclesiástica. Serão desta ordem as dúvidas
do Ministério Público madeirense? Estará Alberto João Jardim prestes a ser
julgado pelo direito canónico – ou até talvez já condenado ou eternamente
absolvido - e ninguém o sabe? Afinal, como reportava a imprensa regional da
época, João Jardim foi ungido como doutor honoris causa na cidade de
Roma, em Fevereiro de 2003, curiosamente o momento inicial da investigação
criminal sobre dívida oculta (seria deste voo e alojamento sapienciais a
primeira factura?).
Tenho para mim que fazer aparecer túneis
e coisas do género e fazer desaparecer das contas oficiais 1,1 mil milhões de
euros, parecendo coisa divina, está bem no plano terreno, em que qualquer
mortal compreende o que está em causa.
Mas voar para Roma, para se ajoelhar
perante São Cirilo, o evangelizador dos eslavos, e receber um grau magno,
exista ele ou não, não será um pouco demais?
Tudo isto permite também uma outra pista
para a investigação a que agora o Ministério Público está obrigado. E se o tal software
de ocultação de facturas o que faria, afinal, seria simplesmente colocá-las em
alfabeto cirílico, grande obra devida àquele santo e que tomou o seu nome? Está
explicada a injustiça! E estão finalmente explicadas as dificuldades do nosso
bem latino Ministério Público! E naturalmente as alegrias do doutor Jardim e
seus confrades.
(*) Miguel
Romão, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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