Num
mundo cada vez mais desigual como aquele em que vivemos, apenas os mais fortes têm direito à
liberdade. Este é, no fundo, o tema base do texto de qualidade excepcional, da
autoria de José Vitor Malheiros, que encontrámos no Público e que reproduzimos
a seguir.
A
crise económica e social que temos vivido nos últimos anos, à qual se somou uma
crise de segurança internacional, tem uma única virtude: prova-nos que nada está
adquirido para sempre em termos civilizacionais e obriga-nos a revisitar
questões que supúnhamos definitivamente consensuais e a reflectir sobre
problemas que, apesar de os sabermos fundamentais, negligenciámos como
sociedade durante muito tempo, esperando que o tempo os fizesse desaparecer ou
os varresse pelo menos para longe da nossa vista.
Uma
dessas questões é a questão da igualdade, um valor que desde a Revolução
Francesa separa águas entre esquerda e direita e que reapareceu com uma agudeza
acrescida com a consciência das desigualdades crescentes das nossas sociedades,
depois de décadas em que o ideal democrático, o primado da lei e o
desenvolvimento tecnológico pareciam prometer-nos a distribuição justa de uma
riqueza crescente com bem-estar para todos.
Para
a extrema-direita económica que governa o mundo ocidental, que designamos
ironicamente como neoliberal (ironicamente porque é de facto velha e porque
abomina toda a liberdade que não seja a dos privilegiados), a desigualdade é
simultaneamente inevitável e extremamente positiva. "Inevitável",
porque, sendo os homens naturalmente diferentes, qualquer hipotético estado de
igualdade inicial depressa daria origem a desigualdades, pela diferente forma
como cada um reage ao meio e explora as oportunidades que se lhe oferecem.
"Positiva", porque, dizem, essa desigualdade é o verdadeiro motor do
progresso, incitando cada um a melhorar a sua sorte e a fazer o possível por
atingir um nível de bem-estar superior ao do seu vizinho. A direita neoliberal
oscila entre os dois argumentos, refugiando-se no argumento da
"inevitabilidade" quando é confrontada com a injustiça evidente de
certas situações de desigualdade e a sua falta de vontade em as reduzir e
argumentando com a "desigualdade-factor de progresso" sempre que a
audiência é receptiva. Para a direita neoliberal, decorre destes argumentos que
a desigualdade na sociedade é justa, porque corresponde, para os privilegiados,
a uma recompensa pelos seus talentos naturais e do seu esforço e, para os
excluídos, a um castigo pela sua falta de talentos e de esforço.
A
argumentação é tão frouxa que não valeria a pena rebatê-la, se não se desse o
caso de ela colher um considerável apoio popular, graças a uma barragem de
propaganda que não tem limites orçamentais e que conseguiu vender a ideia do
sonho americano "from rags to riches" ao universo de indigentes
acorrentados à televisão que veio substituir o que já se chamou proletariado.
Basta considerar o carácter hereditário da riqueza e da pobreza e a sua
acumulação crescente nos dois extremos do espectro social ao longo dos séculos
para destruir qualquer ideia de "mérito" dos privilegiados ou
"demérito" dos deserdados. Aliás, se algum destes neoliberais levasse
a sério a sua teoria do mérito e a sua defesa do liberalismo económico, deveria
ser um feroz adversário de todas as rendas e das heranças e um opositor da
captura do Estado pelas empresas. Na realidade, dedicam as suas vidas a tentar
reforçar os seus privilégios, obtidos por nascimento, por tráfico de influências
ou ambos.
É
estranho ver alguém defender denodadamente a ideia de liberdade e denegrir em
seguida a ideia de igualdade (ou contestar a sua possibilidade), como se a
segunda não fosse condição da primeira. A realidade é que, num mundo desigual,
a liberdade não existe como valor universal, igualmente acessível a todos,
igualmente devida a todos, igualmente propriedade de todos. Num mundo desigual,
a liberdade é um privilégio de alguns, distribuído de acordo com os princípios
que regem a distribuição desigual - quer se trate de bens materiais ou morais.
Só se defende a liberdade como valor quando se defende a igualdade no seu
acesso. De outra forma, apenas se defende a liberdade de alguns, e sempre em
detrimento de outros. Trata-se não de uma defesa da liberdade mas de uma visão
plutocrática da liberdade, anti-liberal por excelência porque anti-igualitária.
Da mesma forma, apenas se defende a saúde quando se defende a "saúde para
todos" e apenas se defende a educação quando se defende a "educação
para todos".
É
evidente para quem o queira ver que a desigualdade entre um desempregado sem
subsídios e um trabalhador com um emprego estável e uma remuneração decente
definem graus de liberdade para cada uma destas pessoas que se encontram a
anos-luz de distância e o mesmo acontece, noutro grau, quando as diferenças são
menos extremas.
Admitir
as desigualdades não significa admitir apenas a pobreza, a carência extrema e o
sofrimento gratuito lado a lado com a opulência, a fome ao lado do desperdício.
Significa admitir uma modulação da liberdade, de acordo com a riqueza de cada
cidadão. Significa admitir um "mercado" onde a liberdade se compra e
se vende como uma mercadoria e não é um valor universal.
Arvorar em valor a liberdade
mas defendê-la sobre o pano de fundo de uma inevitável desigualdade é, na
realidade, o extremo oposto da liberdade. É a liberdade dos fortes e a
submissão dos fracos. Como dizia no século XIX o dominicano Henri
Lacordaire, "entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o
senhor e o servo, é a liberdade que oprime e a lei que liberta".
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