A
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento onde estão
delineados os direitos humanos e foi adoptado pela Organização das Nações
Unidas em 10 de Dezembro de 1948. A Declaração surgiu como um alerta à consciência humana contra as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. Desta forma inscrevia-se no objetivo fundador da ONU, a luta pela paz e pela boa convivência entre as diferentes nações, credos, raças, ideologias, etc. A DUDH enuncia os direitos fundamentais, civis, políticos e sociaisde que devem gozar todos os seres humanos, sem discriminação de raça, sexo, nacionalidade ou de qualquer outro tipo, qualquer que seja o país que habite ou o regime nele instituído.
Como
muito bem é afirmado no excelente texto seguinte (*) em defesa dos Direitos
Humanos (DH) e é importante realçar, os DH formam um todo indivisível, são interdependentes
e universais.
A
história está recheada de momentos em que nações se digladiam em nome de
interpretações diferentes de um mesmo texto.
Lembremo-nos
das guerras religiosas entre, por exemplo, católicos e protestantes, que, com
diferentes interpretações da mesma Bíblia, nela encontraram justificação
suficiente para chegar a algo tão extremo como travar uma guerra. Estas guerras
buscando justificação em diferentes interpretações do mesmo texto não são
exclusivas dos cristãos nem sequer das guerras de religião. Durante a designada
“Guerra Fria”, os blocos “ocidental” e “soviético” acossavam-se com as suas
interpretações da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH): um bloco
culpando o outro por atentar contra os direitos civis e políticos, o outro
bloco culpando o primeiro pelo desrespeito pelos direitos sociais. Aprendemos
daqui que não basta dispor de um texto por mais consensual, claro e inequívoco
que ele se apresente: sempre, esse texto será palco de múltiplas interpretações
e será usado para legitimar posições que se encontram em campos opostos.
É
consensualmente reconhecido que os Direitos Humanos são uma unidade indivisível
(não se pode aceitar e “escolher” só alguns deles…), interdependentes (só o
reconhecimento cabal de todos os direitos assegura a existência real de cada um
deles) e universais (devem aplicar-se a todos os indivíduos e a todas as
sociedades políticas, sem exceção). Destas características dos Direitos
Humanos, é certamente o seu caráter universal que mais é ameaçado hoje em dia.
A grande pergunta e o grande desafio neste aspeto é: “Os Direitos Humanos são
mesmo universais?”
Sabemos
da complexidade da resposta: no plano mundial, o mapa do cumprimento efetivo
dos Direitos Humanos é extraordinariamente dececionante. Darei cinco rápidos
exemplos: 1) existem milhões de pessoas que vivem sob regimes ditatoriais, 2)
existe no século XXI escravatura e tortura, 3) largos extratos populacionais
são refugiados do seu país (batemos recentemente este triste recorde), 4) o
acesso à educação, saúde e subsistência básica é ainda inacessível para uma
maioria da população mundial, 5) há milhares de milhões de pessoas em situação
de pobreza extrema. Isto no panorama mundial. Mas… como se comporta a
universalidade dos DH entre nós?
Frequentemente,
ouvimos opiniões que procuram ligar os Direitos Humanos não a um direito
universal e inalienável mas a uma condição de merecimento. Assim, não bastaria
ser pessoa para usufruir dos Direitos Humanos, seria preciso um julgamento
sobre o merecimento que essa pessoa deveria ter para poder usufruir deles. Os
Direitos Humanos têm que ser merecidos? E qual é o patamar a partir do qual
eles se encontram satisfatoriamente exercidos?
Vejamos
por exemplo o caso da Educação. Dizer e cumprir que “Todos têm direito à
educação” (art. 26.º da DUDH) é louvável mas… têm direito até que nível de
Educação? E a formação profissional é um direito? E a educação de qualidade é
um direito? E o apoio em caso de dificuldades escolares, é um direito? E a
escola a tempo inteiro é um direito? E a educação Inclusiva é um direito? Na
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006),
introduz-se um conceito curioso que é o de reasonable accomodations (traduzido para
português por “adaptações razoáveis”). Curioso porque remete para uma
interpretação do que é “razoável” ou “satisfatório” ou “adequado”. E, aqui,
estamos a pisar um terreno aberto a diferentes interpretações: o que é razoável
para uns pode ser inaceitável para outros.
E
assim se juntam diferentes “ses” aos Direitos Humanos. Direito à Educação? Sim…
e até onde? Até haver meios, técnicos disponíveis, possibilidades, orçamento,
se estiver no tempo certo e no lugar certo… Cada vez estamos mais enfronhados
nesta discussão dos “ses” e parece que muitas vezes já desistimos de
reivindicar a inequívoca universalidade dos Direitos Humanos. Direitos Humanos
para todos, porque todos têm uma dignidade intrínseca e a possibilidade de
realização autónoma e plena de projetos de vida. Agora é tempo de lembrar que
direitos não têm “ses” e esta palavra, “se”, está ausente dos documentos
fundadores, reguladores e inspiradores dos Direitos Humanos. É muito
importante, no momento de crise de finanças e de valores que estamos a
atravessar, reafirmar que não basta um cumprimento formal, um “faz de conta”,
uns “serviços mínimos” para assegurar a universalidade dos Direitos Humanos.
Precisamos de continuar a bater-nos por Direitos Humanos que não sejam uma
cosmética, que não sejam só uma formalidade. Densificar os Direitos Humanos?
Sim, é isso: torná-los mais espessos, mais complexos, mais sólidos, mais
direitos e mais humanos. Sem “ses”.
(*) David Rodrigues, Prof. Universitário
Presidente da Pró-Inclusão, Público
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