Em
pleno Verão, não há como uma leitura leve, ainda que carregada de muita inteligência,
de uma fina ironia e de um indisfarçado humor, para nos deixar bem dispostos, mas
com a mensagem compreendida, como acontece com o texto seguinte, assinado pelo
historiador Manuel Loff no Público de hoje. Só para ler crónicas como esta vale
a pena assinar o Público.
O
tema de hoje tem a ver (inevitavelmente) com o BES e o título que traz é muito
sugestivo: Era uma vez um banqueiro muito
bonzinho…
Lembra-se da historinha do
BPN-que-não-custaria-um-cêntimo-aos-contribuintes? Permita-me, então,
contar-lhe a historinha do BES.
“Era uma vez um banqueiro
respeitado, de família da boa burguesia e com muita tradição na finança
portuguesa, de quem todos os governantes portugueses, antes e depois da
Revolução, se sentiam gratos. Era um homem bem formado, que, depois de sofrer o
espólio e o exílio, triunfara em Portugal depois de governantes sérios, como
Cavaco Silva, corrigirem corajosamente as terríveis injustiças que o
coletivismo revolucionário havia praticado contra ele e a sua família em 1975.
O que fez pelo país e pelo sistema financeiro internacional foi de tal forma
reconhecido pelos seus pares, os governos e as organizações internacionais, que
granjeou prémios e condecorações. Os melhores políticos da direita e da
esquerda (a democrática, claro!) trabalhavam com ele, quer antes de ir (e bem)
para o governo, quer depois dele saírem. Apesar de ser tratado carinhosamente
como o DDT (Dono Disto Tudo), era um homem discreto e de bom gosto. Um dia, não
se sabe bem porquê, um primo invejoso, que até tinha boas relações com o jovem
primeiro-ministro de turno, conspirou contra ele. Entre histórias malvadas do
primo e muita má-fé que contra ele se levantou, o nosso banqueiro bom, que
tanto fizera pelo país (e, é verdade, também por Angola) acabou perseguido pela
justiça e incompreendido pelos mesmos governantes que até então juravam pela
sua honestidade. Ainda hoje não se sabe quem enganou quem.”
Admita que esta poderia ser a
história de Ricardo Salgado contada às criancinhas. O leitor acha-a, absurda?,
de mau gosto? Mas olhe que foi escrita ao estilo de um especialista destas
coisas, João César das Neves, que, há um ano, o (também ele) respeitado
economista da Universidade Católica nos contou a historinha das crises
financeiras de Portugal: este era, antes do 25 de Abril, “um país pacato e trabalhador,
poupado e prudente, que se sacrificava generosamente, labutando dia e noite
para cumprir os deveres”, e “emigrava e procurava vida melhor noutras terras. E
os patrões, franceses ou alemães, suíços ou americanos, gostavam dele, por ser
pacato e trabalhador, poupado e prudente.” Por duas vezes, contudo, o país
endividou-se acima das suas possibilidades. Primeiro, como contava Neves às
criancinhas, por culpa do 25 de Abril: “a opressão acabara (…) e Portugal
voltou [para casa], porque já não seria preciso ser pacato e trabalhador,
poupado e prudente. (...) E Portugal gastou. Criou autarquias e dinamização
cultural, comprou frigoríficos e televisões, fez planeamento económico, exigiu
escolas e hospitais”. É a versão Cigarra&Formiga da tese da Revolução
irresponsável e gastadora. A segunda vez, depois de Portugal ser “admitido na
moeda única”, “achou que já não seria preciso ser pacato e trabalhador, poupado
e prudente”: “graças ao euro, pedia dinheiro emprestado nos mesmos bancos e aos
mesmos preços. (...) Era um país desenvolvido, capitalista, globalizado. E
Portugal gastou. Construiu auto-estradas, fez parques industriais, exigiu
computadores para todos os alunos e novas carreiras médicas.” Desta vez a culpa
era dos “dirigentes e políticos [que] bramavam contra a nova ditadura do
dinheiro e exigiam direitos” (João César das Neves, DN, 9/9/2013).
Dos banqueiros nem sombra. Estas
histórias, por algum motivo, não incluem nunca Oliveiras Costas ou Ricardos
Salgados, BPN, BCP ou BES. Nelas nunca aparecem os rombos colossais abertos
pela banca nas finanças públicas, nem nelas se diz que o Estado faz mal em
cobri-los à custa do português “pacato e trabalhador”. César das Neves é dos
que acham (como toda a liberalice económica) que a culpa do endividamento português
é sempre dos “direitos adquiridos”, dos que foram “os mais favorecidos nos anos
de fartura” (“funcionários, médicos, professores, pensionistas, autarquias”,
diz ele), que se “fingem desvalidos e abusam dos impostos dos pobres” (DN,
7/10/2013). Esses é que arrombaram a economia do português “poupado e
prudente”!
Em 15 dias, o governador do BdP e
a ministra das Finanças passaram de “afirmar, a pés juntos, que o BES era um
banco sólido e que possuía uma almofada financeira suficiente para suportar os
prejuízos decorrentes da exposição ao grupo”, a “dizerem precisamente o
contrário, que tinham sido enganados, e que só tiveram conhecimento de
informação 'materialmente relevante' muito recentemente” (Eugénio Rosa, estudo
de 8/8/2014). Em qualquer caso, os contribuintes não pagarão a factura!
As mesmas pessoas que foram (e
são!) responsáveis pela liberalização financeira que produziu tudo isto,
continuam a ser surpreendidas pelos seus efeitos. Eles são só economistas, e a
Economia deles é assim mesmo: ciência rigorosa para prever a bondade dos
reajustamentos e da austeridade; desvalida e modesta leitura do mundo quando se
trata de supervisionar a liberdade económica.
Não se surpreenda agora o leitor
se lhe explicarem, outra vez, que não nos resta senão reformar mais ainda o
Estado, que gasta o que não pode em prestações sociais irresponsáveis, salários
e pensões incomportáveis, resquícios inaceitáveis desse "Verão Quente de
1975" que ainda estamos a pagar!
Mas... não era do BES que
estávamos a falar?
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