domingo, 3 de agosto de 2014

CALAFRIO CÍVICO


Já aqui exprimimos, várias vezes, de forma bem clara, que a expressão neoliberalismo mas, principalmente, a sua prática, nos causam um irreprimível “calafrio cívico”. Em especial nos últimos três anos, os portugueses têm sentido na sua carne os nefastos efeitos das práticas neoliberais, tal como as conhecemos. Apetece-nos dizer que já chega de agressão desta forma de capitalismo radical. Para lição basta. Infelizmente, chegam-nos todos os dias fortes indícios de que a tortura a que temos sido sujeitos ainda vai ter mais episódios, não se vislumbrando o seu término.
O texto seguinte – transcrevemo-lo do Expresso de sábado (2/8) – constitui uma interessante crítica às políticas neoliberais, por parte do prof. António Casimiro Ferreira da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Imagine o leitor que a expressão neoliberalismo lhe causa – comigo acontece – um calafrio cívico. Porquê? Por sabe-la defensora de um Estado sem preocupações sociais, de indivíduos egoístas e de um mercado que conta mais do que as pessoas e que contagia todos os fenómenos da vida social e política. Não acredito ser possível fazer funcionar uma sociedade verdadeiramente humana, digna, decente e solidária com tais pressupostos. Mais, como crítico do neoliberalismo discordo de uma galáxia de ideias, instituições e autores, por exemplo, Hayek, Friedman, filho e pai, thatcherismo, Banco Mundial, FMI, etc, relativamente à qual contraponho outras ideias nas quais se incluem a não destruição do Estado social, a defesa do serviço nacional de saúde, o investimento na educação, a promoção do direito do trabalho e dos diferentes mecanismos de proteção social e o respeito pela Constituição Portuguesa.
Contudo, caro leitor, veja bem a situação a que chegámos quando após os episódios dos últimos dias relacionados com o BES se confirmam as suspeitas, de que o neoliberalismo nunca existiu em Portugal. Bem, existir, existe, no ideário revolucionário daqueles que com proselitismo ideológico e método afirmam os seus princípios inspirados no breviário da troika e nas políticas de ajustamento estrutural. E até se pode afirmar que somos precursores de uma escola de neoliberalismo, a qual está hierarquicamente das pessoa e redes de interesses económico-finanaceiros, as quais através de uma pedagogia conspirativa manipulam políticas e políticos. É certo que o Estado e a política têm gostado da companhia e do contágio através do qual tem ocorrido a sua captura e a triste corrosão da esfera da política, sabendo-se bem que não há sociedade democrática sem uma política e um poder democráticos fortes.
Assim, o neoliberalismo existe e está não só remoçado pela implementação das políticas de austeridade, mas também, e este é o ponto, pelo princípio da exceção discreto, promovido pelos interesses e pelos lóbis. Para mim, o neoliberalismo da austeridade em Portugal é simultaneamente uma forma de implementar seletivamente medidas e políticas, de facto, neoliberais, tendo por base estruturas de dominação e de poder protagonizadas por elites, lóbis e redes, as quais envolvem o Estado e a política por forma a assegurar os seus proventos e lucros. Tudo isto traz nova luz sobre quem viveu acima das suas possibilidades, quem é culpado por ter consumido demais, bem como, acerca do modo como as transferências de poder e de rendimentos, verificados no actual contexto de austeridade, se tornam parte de um processo complexo da estruturação dos poderes fáticos em Portugal. Apesar da capacidade discursiva de ideias políticas, económicas e sociológicas e da mobilização dos debates no espaço público serem mais importantes do que muitas vezes se pensa, acontece, porém, como diria Keynes, que o mundo é governado por algo mais… de uma forma ou de outra, não são as ideias, mas sim os interesses estabelecidos que determinam a virtude do bem e do mal. Esta é, por enquanto, a teoria política do espírito santo.

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