A
ausência de valores que cada vez se nota com mais frequência na nossa sociedade
é claramente uma marca genética do capitalismo neoliberal. Os ditames do vale
tudo por parte do poder económico-financeiro transmitem-se ao resto da
sociedade como lume em palha seca. É como que o direito do mais forte a fazer o
que lhe apetece, sem o respeito por quaisquer valores.
A
nível universitário, a época do ano que atravessamos, é propícia a práticas
desse tipo através das praxes académicas. Por incrível que pareça, chega-se ao
ponto de ver jovens aspirantes a um curso superior tirarem satisfação ou prazer
de alguma forma de humilhação ou vexame a colegas ou amigos. É inconcebível a evidência
da falta de respeito de estudantes pela morte de outros estudantes quer ela
resulte de circunstâncias trágicas quer do puro assassínio.
O
texto seguinte (*) foi transcrito do Público de hoje e é de grande qualidade em
relação ao tema em apresso.
Fernando
Pessoa diz que “Os americanos tratam tudo a brincar, porque tratam tudo a
sério…” O que é sério deve tratar-se a sério. Não “com ar sério…” O pensamento
do poeta reconduz-nos à seriedade que muitos temas convocam. Sentimos o dever
muito especial de respeitar a vida. E a morte.
Os
estudantes universitários, por maioria de razão, devem respeitar a vida e morte
dos colegas. Exige-lhes o estatuto de universitários. Exigem-lhes os
contribuintes que pagam as universidades. Sobretudo exigem-lhes os grandes
princípios de convivência social e cívica. O máximo respeito pela vida humana.
É apodíctico.
Quer
os assassinados, quer os mortos em circunstâncias trágicas não esclarecidas,
que fosse meramente natural. Não é matéria de palhaçadas, antes de levar muito
a sério. A vida é o bem supremo do homem, não é objecto de jogos gratuitos ou
displicências irresponsáveis e alarves.
Em
matéria de praxe, padeço de agnosia total. Não lhe conheço os fundamentos. Não
lhe conheço as práticas. Só algumas manifestações externas. Digiro mal o que
oiço e vejo por aí. Não capto as virtualidades de tais práticas na introdução e
adaptação dos mais jovens ao mundo universitário. Devem gerar é revolta. Efeito
multiplicador de que outros “pagarão a minha humilhação de hoje”. Ânsia de um
futuro de inversão de papéis. De praxado a praxista.
Recuso
que a humilhação ou vexame de amigo ou colega sejam fonte de prazer ou
satisfação. Não recolhi isso na universidade da vida, nem na dos livros.
Limitações minhas.
A
queima das fitas não me fere a sensibilidade, nem o pensamento. Como celebração
de um novo mundo que se abre na conclusão do curso superior.
A
Universidade do Porto tem o seu Queimódromo. Junto ao mar. Centro da Queima das
Fitas do Porto.
Marlon
Correia, estudante de desporto, foi aí assassinado a tiro por assaltantes.
A
Queima das Fitas continuou. Pelo colega assassinado rezou-se missa. Chorou-se.
Acção real em defesa da liberdade e da vida, nada. Estudantes universitários
sempre nos transmitiram convicções próprias de futuros dirigentes do país e
empresas. Ali não. Os negócios e a borga prevaleceram. O assassinato de Marlon
Correia foi lacrimejado. Não honrado.
Em
Dezembro todo o país se consternou. Era caso para isso. Seis estudantes
universitários morrem na praia do Meco.
Estudantes
de Engenharia Electrónica do Politécnico de Leiria encontraram na tragédia
fonte de inspiração e objecto de boçalidades praxistas. Total falta de
princípios. Seis estudantes universitários morrem tragicamente! Colegas
festejam e mofam das mortes! Não há regras morais e humanistas que os norteiem.
A
“criatividade mórbida” atingiu picos de insustentável.
Os
princípios universais de respeito pela vida, os sentimentos de solidariedade
vivem, felizmente, na alma do povo. A comunidade não se degradou ao ponto de
desrespeitar esses valores. A concidadã vendedeira do Cais do Sodré em Lisboa
ou da Ribeira do Porto respeita religiosamente a morte do vizinho. Não lhe
passa sequer pela cabeça mofar disso. Em espaços universitários não é bem
assim. A vida e morte cedem à folia e à irresponsabilidade. São temática de
manifestações burlescas e amorais. É penoso dizê-lo.
A
Universidade não pode aceitar isso. Ser cúmplice.
(*) Alberto
Pinto Nogueira, Procurador-geral adjunto
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