sexta-feira, 10 de outubro de 2014

AUSÊNCIA DE VALORES TEM MARCA GENÉTICA DO NEOLIBERALISMO


A ausência de valores que cada vez se nota com mais frequência na nossa sociedade é claramente uma marca genética do capitalismo neoliberal. Os ditames do vale tudo por parte do poder económico-financeiro transmitem-se ao resto da sociedade como lume em palha seca. É como que o direito do mais forte a fazer o que lhe apetece, sem o respeito por quaisquer valores.
A nível universitário, a época do ano que atravessamos, é propícia a práticas desse tipo através das praxes académicas. Por incrível que pareça, chega-se ao ponto de ver jovens aspirantes a um curso superior tirarem satisfação ou prazer de alguma forma de humilhação ou vexame a colegas ou amigos. É inconcebível a evidência da falta de respeito de estudantes pela morte de outros estudantes quer ela resulte de circunstâncias trágicas quer do puro assassínio.
O texto seguinte (*) foi transcrito do Público de hoje e é de grande qualidade em relação ao tema em apresso.
Fernando Pessoa diz que “Os americanos tratam tudo a brincar, porque tratam tudo a sério…” O que é sério deve tratar-se a sério. Não “com ar sério…” O pensamento do poeta reconduz-nos à seriedade que muitos temas convocam. Sentimos o dever muito especial de respeitar a vida. E a morte.
Os estudantes universitários, por maioria de razão, devem respeitar a vida e morte dos colegas. Exige-lhes o estatuto de universitários. Exigem-lhes os contribuintes que pagam as universidades. Sobretudo exigem-lhes os grandes princípios de convivência social e cívica. O máximo respeito pela vida humana. É apodíctico.
Quer os assassinados, quer os mortos em circunstâncias trágicas não esclarecidas, que fosse meramente natural. Não é matéria de palhaçadas, antes de levar muito a sério. A vida é o bem supremo do homem, não é objecto de jogos gratuitos ou displicências irresponsáveis e alarves.
Em matéria de praxe, padeço de agnosia total. Não lhe conheço os fundamentos. Não lhe conheço as práticas. Só algumas manifestações externas. Digiro mal o que oiço e vejo por aí. Não capto as virtualidades de tais práticas na introdução e adaptação dos mais jovens ao mundo universitário. Devem gerar é revolta. Efeito multiplicador de que outros “pagarão a minha humilhação de hoje”. Ânsia de um futuro de inversão de papéis. De praxado a praxista.
Recuso que a humilhação ou vexame de amigo ou colega sejam fonte de prazer ou satisfação. Não recolhi isso na universidade da vida, nem na dos livros. Limitações minhas.
A queima das fitas não me fere a sensibilidade, nem o pensamento. Como celebração de um novo mundo que se abre na conclusão do curso superior.
A Universidade do Porto tem o seu Queimódromo. Junto ao mar. Centro da Queima das Fitas do Porto.
Marlon Correia, estudante de desporto, foi aí assassinado a tiro por assaltantes.
A Queima das Fitas continuou. Pelo colega assassinado rezou-se missa. Chorou-se. Acção real em defesa da liberdade e da vida, nada. Estudantes universitários sempre nos transmitiram convicções próprias de futuros dirigentes do país e empresas. Ali não. Os negócios e a borga prevaleceram. O assassinato de Marlon Correia foi lacrimejado. Não honrado.
Em Dezembro todo o país se consternou. Era caso para isso. Seis estudantes universitários morrem na praia do Meco.
Estudantes de Engenharia Electrónica do Politécnico de Leiria encontraram na tragédia fonte de inspiração e objecto de boçalidades praxistas. Total falta de princípios. Seis estudantes universitários morrem tragicamente! Colegas festejam e mofam das mortes! Não há regras morais e humanistas que os norteiem.
A “criatividade mórbida” atingiu picos de insustentável.
Os princípios universais de respeito pela vida, os sentimentos de solidariedade vivem, felizmente, na alma do povo. A comunidade não se degradou ao ponto de desrespeitar esses valores. A concidadã vendedeira do Cais do Sodré em Lisboa ou da Ribeira do Porto respeita religiosamente a morte do vizinho. Não lhe passa sequer pela cabeça mofar disso. Em espaços universitários não é bem assim. A vida e morte cedem à folia e à irresponsabilidade. São temática de manifestações burlescas e amorais. É penoso dizê-lo.
A Universidade não pode aceitar isso. Ser cúmplice.
(*) Alberto Pinto Nogueira, Procurador-geral adjunto

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