Vivemos
num mundo de enganos dominado pelos ricos e poderosos.
A
Leya nasceu em 2008 como grupo editorial e actualmente lidera o mercado
português, assim como o angolano e o moçambicano.
O
Prémio Leya foi criado em 2008 “com o objectivo de distinguir um romance
inédito escrito em português”. O valor atribuído ao vencedor é de 100 mil
euros.
Até
aqui, tudo bem, dado ser natural que se procure premiar “novos talentos da
língua portuguesa” assim como proceder à sua promoção internacional.
É
a partir deste ponto que surge a parte negra do prémio ou seja, de onde vem o
dinheiro a atribuir ao laureado. Segundo um artigo de opinião que podemos ler
hoje no Público (*), somos levados a crer que – resumindo em poucas palavras –
uma parte significativa do valor do prémio vem precisamente dos bolsos do autor
distinguido…
O
Prémio Leya, ao qual podem concorrer obras inéditas de ficção narrativa em
língua portuguesa (e cujo vencedor deste ano foi conhecido na semana passada),
tem um regulamento que contraria o modo como ele é anunciado e publicamente
percebido. Em primeiro lugar, a decisão do júri, “constituído por, pelo menos,
sete destacadas personalidades do mundo literário e cultural”, exerce-se sobre
um corpus de, no máximo, dez inéditos, seleccionados pela editora entre
um total de algumas centenas de concorrentes (um número tão espantoso que é
fácil adivinhar que a maior parte nem aguenta uma triagem feita após a leitura
da primeira página ou, até, do primeiro parágrafo). Portanto, o júri escolhe
num universo restrito resultante da escolha feita por outrem, que é uma parte
interessada e não neutra. Em segundo lugar, o prémio, no valor de 100 mil
euros, parecendo enorme para a nossa escala, tem uma contrapartida que não é
assim tão generosa: o autor abdica de receber direitos de autor até aos 85 mil
exemplares vendidos e “cede à Leya o direito exclusivo de explorar
comercialmente [o livro] sob todas as formas e em todas as modalidades, em todo
o mundo”. É provável — quase seguro — que o montante do prémio seja uma quantia
muito superior ao que o autor ganharia se o livro não beneficiasse desse
veículo que potencializa as vendas e outros modos — eventuais — de rendimento.
É porém completamente falso dizer que o autor ganhou um prémio de 100 mil
euros, como se não estivesse a ceder, como forma de pagamento, os direitos de
autor. Este prémio funciona assim como um contrato e não como uma doação: a
editora simula que está a oferecer 100 mil euros, mas na verdade o que está a
fazer é ceder o capital de prestígio — simbólico — que angariou através de
determinadas regras do campo literário (antes de mais, mobilizando “destacadas
personalidades”, que têm uma função legitimadora) e a organizar o ritual de
modo a converter o capital simbólico em capital real. Não há nada de novo a
assinalar neste mecanismo (cujo regulamento é público e transparente), a não
ser o facto de se tratar de um contrato que precisa de ser dissimulado como
prémio para que se criem as condições — certamente não muito fáceis — para que
as duas partes ganhem a aposta. A questão mais interessante que aqui se coloca
é a seguinte: da “ecologia” literária onde se desenvolvem estas espécies está
ausente qualquer concepção de uma literatura autónoma (o que não exclui que
livro premiado contradiga o “meio” de onde nasceu o prémio). Um prémio deste
tipo situa-nos na condição de uma literatura como género editorial. É essa
hoje, também, a condição de uma “literatura mundial”, que já nada tem a ver com
o conceito de Weltliteratur que Goethe anunciou nas suas conversas com
Eckermann. Esta nova “mundialidade” da literatura não é um estado que
caracteriza um conjunto de obras, mas um processo pelo qual o universalismo
literário de uma world fiction se conseguiu impor por todo o lado. Esta
nova literatura mundial diz-nos muito sobre o editorialismo (noção que abrange
muito mais do que as editoras de livros), mas muito pouco sobre a literatura.
Há uma fábrica do universal que transformou toda a ecologia literária, de tal modo
que se justifica esta pergunta: para onde vai a literatura? E a resposta, fácil
de obter quando se entra hoje numa livraria, é esta: vai no sentido do seu
desaparecimento, ou pelo menos de uma forma de desaparecimento que nos faz ver
claramente quão exíguo é o espaço público que lhe está reservado.
(*) A ecologia literária
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