A
desumanização imposta pelo neoliberalismo dominante atingiu as raias do
inimaginável até para as mentes mais perversas. Tudo está estudado ao pormenor
para maximizar os lucros ainda que se recorra às medidas mais desumanas. Mesmo para
quem segue com atenção as malfeitorias urdidas pelo sistema para atingir os
seus fins não poderá imaginar o rigor científico que é colocado nas formas de exploração
de quem trabalha.
Longe
vão os tempos (séculos XVIII/XIX) da desumanidade e da exploração extrema a que
eram sujeitos os trabalhadores antes de conseguirem, através de alguma organização,
conquistar alguns direitos básicos. Só que, nessa altura as formas de exploração
eram tão claras que toda a gente as percebia a olho nu. Actualmente, apenas com
conhecimento científico se detecta a exploração não menos desumana a que os
trabalhadores são sujeitos.
No
texto que hoje assina no Público, José Victor Malheiros (JVM) descreve com
algum pormenor o que se passa actualmente em locais de trabalho diferentes mas
vamos deixar aqui os exemplos que ele aponta em relação a duas instituições
bancárias. Vale a pena ler com muita atenção a descrição que JVM faz.
A
mulher está empoleirada numa cadeira alta, que mais parece um banco de bar,
atrás de um balcão diminuto. Veste um fato preto, sóbrio e elegante, e sorri
enquanto atende os clientes que vão entrando e que não têm sequer espaço para
pousar a pasta ou o saco de mão em cima do exíguo pedaço de vidro que faz as
vezes de balcão. Os homens pousam a pasta no chão, penduram o guarda-chuva no
pescoço, dobram o impermeável no braço e apertam o computador entre as pernas.
As mulheres hesitam mas ficam com tudo nos braços, casaco, guarda-chuva, mala,
saco do computador, mochila, sacos de compras, lancheira.
A
cena passa-se numa dependência da CGD, mas podia ser noutro banco porque são
todos iguais. Tudo parece ter sido estudado para colocar o cliente numa
situação de incomodidade e precariedade, para o obrigar a despachar-se
rapidamente e não ocupar o tempo precioso da funcionária que atende. É a mesma
função da música aos berros nos fast food. O objectivo é afugentar rapidamente o
cliente para acelerar a rotação e poder reduzir o número de trabalhadores ao
mínimo.
O
minibalcão à entrada, em vez de uma secretária com uma recepcionista, foi
invenção de um génio da produtividade. A funcionária ocupa assim apenas meio
metro quadrado, em vez dos três metros que ocuparia se tivesse um posto de
trabalho confortável. É só poupança. O génio da produtividade esfrega as mãos
de contente. Subliminarmente, o desconforto do trabalhador também lhe transmite
a mensagem de que a sua situação profissional é, como a sua posição física,
instável, e que a sua pessoa é, como o espaço que lhe concedem, insignificante.
Penso
em quanto tempo aguentaria eu a trabalhar neste posto, naquela exposição total,
frente à porta, naquele desamparo, empoleirado naquele inóspito minibalcão de
vidro. Não há o mínimo espaço pessoal, não há nada pessoal naquele espaço nem
pode haver, por imperativo físico. Por baixo do balcão, há prateleiras a
transbordar de impressos, e é tudo. Onde guardará esta empregada o casaco, o
chapéu de chuva, a carteira, os sacos de compras, o livro que está a ler, os
desenhos dos filhos, as fotografia das férias, as mil e uma coisas com que os
trabalhadores tornam seu o espaço de trabalho? Imagino que deve ter, por trás
das portas de vidro fechadas aos clientes, um canto para tudo isso, um cabide,
um cacifo. Houve um tempo em que os operários eram tratados assim mas não os
empregados dos serviços. Nos escritórios, os trabalhadores detinham algum
controlo sobre o seu local de trabalho, podiam humanizar o seu espaço. Agora
são todos proletários. E o local de trabalho é apenas mais uma peça da máquina
que se quer oleada e estéril, um local onde encaixa outra peça chamada “o
colaborador”. E encaixa à justa.
Na dependência do BCP onde
entro a seguir também há um minibalcão à entrada. E, a poucos metros, há uma
série de cubículos com separadores de vidro, com secretárias, mas todos tão
impessoais como o balcão da entrada. Os cubículos proporcionam a mesma
privacidade que uma camarata, mas o sigilo bancário é algo com que os bancos
apenas se preocupam em relação aos grandes clientes e esses nunca se sentam nos
cubículos de vidro. As secretárias estão desprovidas de qualquer toque pessoal
para poderem ser usadas rotativamente por diferentes funcionários. É como o
sistema de “cama quente” na Marinha. Três marinheiros a fazer turnos só precisam
de uma cama. Nos barcos é por falta de espaço, aqui é para poupar dinheiro.
Tudo foi pensado para deixar bem claro aos trabalhadores que não pertencem aqui
e que nada do que aqui está lhes pertence. Para deixar claro que, quando se
forem, outros, quaisquer outros, absolutamente igual a eles, os irão
substituir, usando as mesmas secretárias, as mesmas cadeiras, as mesmas frases
para garantir aos clientes que irão “propor-lhes a solução que melhor se adapta
ao seu caso pessoal”.
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