Uma
das características dos regimes totalitários é levarem a cabo acções que
receberam a designação genérica de “reescrever a história”. Ocultam-se factos
pouco abonatórios para esses regimes, ao mesmo tempo que se exaltam outros de
menor importância, chegando-se ao ponto da invenção pura e simples de feitos
levados a cabo por chefes dotados de poderes muito próximos dos de deuses mas
facilmente desmascaráveis. Num regime democrático nada disto poderia acontecer,
pensamos nós, dada a liberdade de os denunciarmos. Isso é verdade mas também não
é menos verdade que, mesmo em democracia, é muito grande a tentação de exaltar
feitos de figuras menores cujo destino é o caixote de lixo da história, por
muitas homenagens que se lhes prestem e por muitos elogios de que sejam alvo. É
que, factos são factos.
No
artigo de opinião que assina este sábado no Público, o historiador e
investigador Manuel Loff aponta exemplos de figuras sobejamente conhecidas da opinião
pública, alvos dos maiores elogios mas que carregam fortes e indesculpáveis
responsabilidades pela “asfixia social em que vivemos” e que não podem ser
branqueadas. Um texto muito claro e de fácil leitura.
Em
poucos dias, foram homenageadas duas figuras públicas com responsabilidades
muito diretas na asfixia social em que vivemos. A Câmara Municipal da Covilhã
decidiu homenagear José Sócrates em “merecido e singelo” reconhecimento pelo
trabalho desenvolvido “a favor da cidade”. Eu ainda não tinha fechado a boca do
espanto quando se noticiou que, na mesma cidade, a Universidade da Beira
Interior (UBI) concedia um Doutoramento Honoris Causa a Zeinal Bava, o
homem que foi decisivo a desfazer em fumo anos de trabalho da Portugal Telecom!
E
lembrei-me que, há um ano, o ISEG, de Lisboa, decidira homenagear da mesma
forma Ricardo Salgado, o homem que, segundo João Duque, “é um exemplo de
liderança (...), tem as relações nacionais e internacionais certas, que delas
faz a gestão sensata, e zela pelo ativo mais preciso da atividade bancária: a
confiança”, com as “qualidades de liderança em tranquilidade, (…) de decisão em
serenidade” (discurso do padrinho do candidato a Doutor, 11.7.2013).
Seria
bom momento para discutir a função simbólica (e económica?) dos doutoramentos Honoris Causa,
estes rituais que tantas vezes mostram falta de independência e elogio babado
aos poderosos, com os quais as sociedades pós-aristocráticas em que vivemos
procuram saciar a nostalgia que as elites sempre sentiram pela nobilitação –
mas não é o que farei. O que me indigna é a vontade deliberada, acintosa, de
reescrever a História, de procurar uma glória totalmente imerecida para
encobrir precisamente o contrário daquilo por que se homenageia!
A
UBI, em plena crise de sobrevivência (há anos que os vários governos ameaçam
dissolvê-la), não quis desistir da cerimónia depois de se ter sabido da
brilhante decisão tomada por Bava em arriscar a sobrevivência da PT em favor de
uma aventura com essa gente tão “sensata” e “serena” do Espírito Santo.
Aparentemente, ela terá sido produto daquilo que, segundo José Tribolet, o
catedrático do Instituto Superior Técnico que fez as vezes de padrinho de Bava
na UBI, “carateriza a liderança” do ex-patrão da PT: “ser transparente”, “ter uma
visão clara e manter o foco”, e, o melhor de tudo, “fazer pela sorte”! (ver
discurso de Tribolet no YouTube, 23.10.2014). Zeinal Bava recebera de Cavaco
Silva, neste último 10 de junho, a Grã-Cruz da Ordem de Mérito Empresarial, e
fizera aquele famoso favor a Sócrates de (já então...) gastar uns milhões para
tentar comprar a TVI para calar a campanha que o então PM achava que havia
contra ele. Entre os “ensinamentos que eu próprio retiro das suas posições
públicas”, Tribolet sublinhou o de “aprender com os erros” porque “só não erra
quem não toma decisões, assumindo as consequências”. Não me surpreende que em
semelhante homenagem se tenha insistido tanto no “erro”; o que me pergunto é se
entre as “consequências” a “assumir” estará incluída a indemnização de 5,4
milhões de euros que Bava receberá da Oi em nome não se percebe de quê, “que se
acrescentam aos estimados 50 milhões que o executivo recebeu, entre remuneração
e prémios, durante sua trajetória na PT e o processo de fusão com a Oi” (Valor Econômico,
8.10.2014). Minudências contratuais, seguramente deduzíveis do “fazer pela
sorte”!
A
CM da Covilhã, essa, homenageou o seu antigo funcionário, o engenheiro técnico
que lá trabalhou nos anos 80 (lembram-se daqueles projetos que, sendo de
outros, ele terá assinado para os poder viabilizar?). E Sócrates escolheu fazer
autobiografia. Foi na Covilhã onde aprendeu a “valorizar o ideal da justiça
social” porque nela havia “segregação social”, “racismos de classe” e “divisão
entre ricos e pobres” (PT Jornal, 21.10.2014). A Covilhã e a
Beira Interior terão tudo menos razões para estar contentes com o modelo de
(sub)desenvolvimento que há décadas vem desertificando humana e produtivamente
o interior do país, deixando que o mercado deixe morrer mais depressa, reduza a
muito poucas as perspetivas de futuro, desenhe a própria paisagem, que é o que
resulta da redução brutal do investimento público (-68,1% no distrito de
Castelo Branco só no primeiro mandato de Sócrates), do encerramento de escolas,
maternidades e centros de saúde, tudo decisões do Governo de quem também impôs
portagens às SCUT que, até então, constituíam um arremedo de discriminação
positiva de uma região que dela precisa – e que tudo perdeu. Mas é
verdadeiramente imoral que o homem sob cujo Governo o desemprego quase
triplicou, que deixou sem subsídio 60% das vítimas deste, que num ano (2010-11)
tirou o RSI a 100 mil pessoas, bolsas a 20% dos estudantes, abono de família a
600 mil crianças (ver Eugénio Rosa, Ataque Global ao Estado Social em
Portugal,
21.5.2011), venha dizer, três anos depois, que “aqui [na Covilhã] não
havia escola para todos, aqui não havia acesso à saúde para todos e foi por
isso que, de forma instintiva e natural, a valorização da igualdade fez de mim
o que sou hoje: um socialista” que valoriza o “interesse coletivo”!
Este
é o mesmo homem que escolheu perorar sobre a tortura como tema da sua tese de
mestrado, depois de ter sido chefe do Governo de um país usado pelos americanos
para transportar ilegalmente prisioneiros, detidos também ilegalmente, para
prisões não menos ilegais onde se torturava contra todas as convenções
internacionais. “Eu não sabia e acredito que o ministro dos Negócios
Estrangeiros também não sabia! (…) [Da] política pública de tortura que a
Administração Bush praticou, soube-o agora”. Clara F. Alves perguntou-lhe se
não teria escolhido “um tema (…) que convida ao assentimento coletivo e à
reabilitação”. Resposta: “Eu estou-me a borrifar para o que possam pensar!” (Expresso -
Revista, 19.10.2013) Até aqui José Sócrates esconde o essencial: é que é mesmo
“o que possam [continuar a] pensar” que o preocupa! O que ele quer é
condicionar a memória futura, é escrever a História enquanto vai a tempo!
Bava e a assunção das
consequências do erro; Salgado e a confiança; Sócrates e o amor pela
igualdade... Todos eles partilharão, seguramente, aquela velha máxima que estas
personagens costumam pronunciar quando procuram sacudir responsabilidades
penais: “A História julgar-me-á!” É por isso que se empenham tanto em serem
eles próprios a escrevê-la.
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