domingo, 26 de outubro de 2014

“REESCREVER A HISTÓRIA” EM DEMOCRACIA


Uma das características dos regimes totalitários é levarem a cabo acções que receberam a designação genérica de “reescrever a história”. Ocultam-se factos pouco abonatórios para esses regimes, ao mesmo tempo que se exaltam outros de menor importância, chegando-se ao ponto da invenção pura e simples de feitos levados a cabo por chefes dotados de poderes muito próximos dos de deuses mas facilmente desmascaráveis. Num regime democrático nada disto poderia acontecer, pensamos nós, dada a liberdade de os denunciarmos. Isso é verdade mas também não é menos verdade que, mesmo em democracia, é muito grande a tentação de exaltar feitos de figuras menores cujo destino é o caixote de lixo da história, por muitas homenagens que se lhes prestem e por muitos elogios de que sejam alvo. É que, factos são factos.
No artigo de opinião que assina este sábado no Público, o historiador e investigador Manuel Loff aponta exemplos de figuras sobejamente conhecidas da opinião pública, alvos dos maiores elogios mas que carregam fortes e indesculpáveis responsabilidades pela “asfixia social em que vivemos” e que não podem ser branqueadas. Um texto muito claro e de fácil leitura.
Em poucos dias, foram homenageadas duas figuras públicas com responsabilidades muito diretas na asfixia social em que vivemos. A Câmara Municipal da Covilhã decidiu homenagear José Sócrates em “merecido e singelo” reconhecimento pelo trabalho desenvolvido “a favor da cidade”. Eu ainda não tinha fechado a boca do espanto quando se noticiou que, na mesma cidade, a Universidade da Beira Interior (UBI) concedia um Doutoramento Honoris Causa a Zeinal Bava, o homem que foi decisivo a desfazer em fumo anos de trabalho da Portugal Telecom!
E lembrei-me que, há um ano, o ISEG, de Lisboa, decidira homenagear da mesma forma Ricardo Salgado, o homem que, segundo João Duque, “é um exemplo de liderança (...), tem as relações nacionais e internacionais certas, que delas faz a gestão sensata, e zela pelo ativo mais preciso da atividade bancária: a confiança”, com as “qualidades de liderança em tranquilidade, (…) de decisão em serenidade” (discurso do padrinho do candidato a Doutor, 11.7.2013).
Seria bom momento para discutir a função simbólica (e económica?) dos doutoramentos Honoris Causa, estes rituais que tantas vezes mostram falta de independência e elogio babado aos poderosos, com os quais as sociedades pós-aristocráticas em que vivemos procuram saciar a nostalgia que as elites sempre sentiram pela nobilitação – mas não é o que farei. O que me indigna é a vontade deliberada, acintosa, de reescrever a História, de procurar uma glória totalmente imerecida para encobrir precisamente o contrário daquilo por que se homenageia!
A UBI, em plena crise de sobrevivência (há anos que os vários governos ameaçam dissolvê-la), não quis desistir da cerimónia depois de se ter sabido da brilhante decisão tomada por Bava em arriscar a sobrevivência da PT em favor de uma aventura com essa gente tão “sensata” e “serena” do Espírito Santo. Aparentemente, ela terá sido produto daquilo que, segundo José Tribolet, o catedrático do Instituto Superior Técnico que fez as vezes de padrinho de Bava na UBI, “carateriza a liderança” do ex-patrão da PT: “ser transparente”, “ter uma visão clara e manter o foco”, e, o melhor de tudo, “fazer pela sorte”! (ver discurso de Tribolet no YouTube, 23.10.2014). Zeinal Bava recebera de Cavaco Silva, neste último 10 de junho, a Grã-Cruz da Ordem de Mérito Empresarial, e fizera aquele famoso favor a Sócrates de (já então...) gastar uns milhões para tentar comprar a TVI para calar a campanha que o então PM achava que havia contra ele. Entre os “ensinamentos que eu próprio retiro das suas posições públicas”, Tribolet sublinhou o de “aprender com os erros” porque “só não erra quem não toma decisões, assumindo as consequências”. Não me surpreende que em semelhante homenagem se tenha insistido tanto no “erro”; o que me pergunto é se entre as “consequências” a “assumir” estará incluída a indemnização de 5,4 milhões de euros que Bava receberá da Oi em nome não se percebe de quê, “que se acrescentam aos estimados 50 milhões que o executivo recebeu, entre remuneração e prémios, durante sua trajetória na PT e o processo de fusão com a Oi” (Valor Econômico, 8.10.2014). Minudências contratuais, seguramente deduzíveis do “fazer pela sorte”!
A CM da Covilhã, essa, homenageou o seu antigo funcionário, o engenheiro técnico que lá trabalhou nos anos 80 (lembram-se daqueles projetos que, sendo de outros, ele terá assinado para os poder viabilizar?). E Sócrates escolheu fazer autobiografia. Foi na Covilhã onde aprendeu a “valorizar o ideal da justiça social” porque nela havia “segregação social”, “racismos de classe” e “divisão entre ricos e pobres” (PT Jornal, 21.10.2014). A Covilhã e a Beira Interior terão tudo menos razões para estar contentes com o modelo de (sub)desenvolvimento que há décadas vem desertificando humana e produtivamente o interior do país, deixando que o mercado deixe morrer mais depressa, reduza a muito poucas as perspetivas de futuro, desenhe a própria paisagem, que é o que resulta da redução brutal do investimento público (-68,1% no distrito de Castelo Branco só no primeiro mandato de Sócrates), do encerramento de escolas, maternidades e centros de saúde, tudo decisões do Governo de quem também impôs portagens às SCUT que, até então, constituíam um arremedo de discriminação positiva de uma região que dela precisa – e que tudo perdeu. Mas é verdadeiramente imoral que o homem sob cujo Governo o desemprego quase triplicou, que deixou sem subsídio 60% das vítimas deste, que num ano (2010-11) tirou o RSI a 100 mil pessoas, bolsas a 20% dos estudantes, abono de família a 600 mil crianças (ver Eugénio Rosa, Ataque Global ao Estado Social em Portugal, 21.5.2011), venha dizer, três anos depois, que “aqui [na Covilhã] não havia escola para todos, aqui não havia acesso à saúde para todos e foi por isso que, de forma instintiva e natural, a valorização da igualdade fez de mim o que sou hoje: um socialista” que valoriza o “interesse coletivo”!
Este é o mesmo homem que escolheu perorar sobre a tortura como tema da sua tese de mestrado, depois de ter sido chefe do Governo de um país usado pelos americanos para transportar ilegalmente prisioneiros, detidos também ilegalmente, para prisões não menos ilegais onde se torturava contra todas as convenções internacionais. “Eu não sabia e acredito que o ministro dos Negócios Estrangeiros também não sabia! (…) [Da] política pública de tortura que a Administração Bush praticou, soube-o agora”. Clara F. Alves perguntou-lhe se não teria escolhido “um tema (…) que convida ao assentimento coletivo e à reabilitação”. Resposta: “Eu estou-me a borrifar para o que possam pensar!” (Expresso - Revista, 19.10.2013) Até aqui José Sócrates esconde o essencial: é que é mesmo “o que possam [continuar a] pensar” que o preocupa! O que ele quer é condicionar a memória futura, é escrever a História enquanto vai a tempo!
Bava e a assunção das consequências do erro; Salgado e a confiança; Sócrates e o amor pela igualdade... Todos eles partilharão, seguramente, aquela velha máxima que estas personagens costumam pronunciar quando procuram sacudir responsabilidades penais: “A História julgar-me-á!” É por isso que se empenham tanto em serem eles próprios a escrevê-la.

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