quarta-feira, 11 de julho de 2018

AS RENDAS EXCESSIVAS PAGAS ÀS ELÉCTRICAS


Esconder a verdade ou parte dela é o mesmo que mentir. Interesses espúrios não têm qualquer pudor na deturpação da verdade desde que os seus ganhos fiquem salvaguardados. Na realidade, uma mentira espalhada aos quatro ventos, desde que o desmentido não se faça ouvir, cola na opinião pública como se fosse verdade. Como muito bem sabemos, as redes sociais são um difusor incontrolável (até agora) das mais torpes mentiras sem que os atingidos se possam defender ou, sequer, demandar judicialmente quem as inventou. O conhecimento desta situação faz com que comecemos a estar prevenidos contra as chamadas notícias falsas.
Mas as notícias falsas ou manipulações da verdade podem concretizar-se de uma forma menos notória através de simples artigos de opinião em órgãos da comunicação social considerados de referência como é aquele a que se refere o deputado do BE, Jorge Costa, no texto que assina no “Público” de hoje e que tem a ver com a política do Bloco sobre as rendas excessivas na electricidade. Mesmo importante é lê-lo.
Aníbal Fernandes publicou neste jornal um longo artigo contra a política do Bloco sobre as rendas excessivas na eletricidade (“Em defesa das Energias Renováveis: basta de populismo”). Proponho nesta resposta algumas notas críticas, a partir de um conjunto de perguntas.  
0. Declaração de interesses 
Aníbal Fernandes é sócio de Carlos Pimenta no fundo Novenergia, que está a tentar vender a empresa Generg (488MW renováveis em operação em Portugal) a uma estatal chinesa. A obrigação desta declaração de interesses ficou por cumprir no artigo de Aníbal Fernandes. Começo por ela, por respeito aos leitores e leitoras.
Apesar desta omissão, Fernandes não prescinde do habitual anátema sobre interesses ocultos: os inimigos das rendas excessivas na energia são amigos do nuclear. O refrão é antigo mas não vale nada: o lobby nuclear está muitíssimo bem representado... no setor das renováveis. São precisamente as mesmas empresas que tanto investem numa como na outra indústria, mudando de discurso e de lobistas conforme convém para manter privilégios em ambas. Assim se passa também em Portugal: as ambientalmente beneméritas EDP, Endesa e Iberdrola, tão empenhadas no subsídio às eólicas, são também acionistas das centrais nucleares de Trillo e de Almaraz, que querem eternizar como uma bomba sobre o Tejo. Adiante.
1. As energias renováveis são caras?
Não. Elas tornam-se caras para remunerar o capital rentista. De facto, os consumidores portugueses poderiam pagar menos pela energia renovável sem com isso atrasar a transição para as energias limpas. Basta comparar com outros países. Partamos do relatório e contas da EDP Renováveis, empresa que, com apenas 12% da sua atividade em Portugal, obtém aqui 27% dos lucros. Tomando os preços da EDP-R como referência, se esta energia fosse vendida em Portugal aos preços médios que os produtores como a EDP-R praticam noutros países, os portugueses pagariam menos 400 milhões de euros ao ano (um terço de todo o sobrecusto da produção renovável). O que é caro não é a energia renovável, é mesmo a renda excessiva.
2. Reduzir o subsídio condena a transição energética?
Os custos energéticos das famílias portuguesas são dos mais altos da Europa e os índices de pobreza energética, com morte excessiva no inverno, também. Esta é uma preocupação central do Bloco, que Fernandes nem refere. Ora, se o consumidor português passasse a pagar as renováveis aos preços espanhóis, a sua fatura cairia 60 euros/ano, em média. Diga-se, aliás, que a proposta bloquista de uma contribuição dos produtores renováveis só parcialmente corrigia este abuso, reduzindo a fatura média em 40 euros/ano.
A grande maioria das centrais está completamente amortizada e nenhuma carece deste subsídio abusivo para ser rentável. Em Espanha, a redução de subsídios às renováveis ocorreu em 2013 e o país não ruiu num gigantesco apagão. Diz Fernandes que “nos últimos 5 anos não houve um cêntimo de investimento estrangeiro em Espanha na área da Energia”. Não é preciso ir muito longe, nem muito atrás, para desmentir a fake news: a própria EDP está inscrita para mais 93 MW eólicos remunerados a preços de mercado (“EDP Renováveis reforça em Espanha” - Expresso, 15 jan 2016). E não está sozinha. Em 2016 e 2017, realizaram-se em Espanha três leilões que acrescentaram 8700 MW de nova capacidade renovável e há outros 23 mil MW em diferentes etapas de planeamento. 
Quanto à litigância das empresas, ela não teve até agora custos de monta para o Estado, que tem vencido nos tribunais espanhóis. Em qualquer caso, as medidas espanholas não são comparáveis com a contribuição proposta pelo Bloco. O Estado espanhol impôs uma alteração contratual (uma taxa de "rentabilidade razoável" definida por lei com efeitos retroativos). O que o Bloco propôs há um ano foi uma contribuição sobre a parte subsidiada do preço de venda, a vigorar até à eliminação do insustentável défice tarifário. 
3. O escândalo da extensão dos subsídios
O grande silêncio do artigo de Aníbal Fernandes é quanto ao futuro. Fernandes lista as sucessivas vagas de contratos ao longo dos anos, mas omite a decisão tomada em 2013 pelo governo PSD/CDS de prolongar a subsidiação às eólicas para além do prazo contratual. Ora, se o esquema não for revertido, a dimensão da desgraça para os consumidores pode rondar os 1000 milhões de euros. 
O negócio é simples: para conter aumentos da fatura, o ministro Álvaro Santos Pereira propôs uma "contribuição voluntária" ao setor eólico (cerca de 20 milhões anuais pagos pelo conjunto das empresas entre 2013 e 2020), que depois usou como pretexto para o isentar da CESE, a contribuição extraordinária paga por quase todo o setor elétrico. As empresas eólicas apressaram-se a aderir. 
Aderiram todas, e não era para menos. Em troca da “contribuição”, foi adiado por sete anos o fim dos preços subsidiados, previsto para 2020. Assim, em vez do preço de mercado (cerca de 48€/Mwh nas previsões oficiais), os produtores nunca receberão menos de 74€/Mwh. Este período adicional de subsídio carrega nas faturas mais de 1100 milhões de euros entre 2020 e 2027. Descontada a "contribuição", são mais de 900 milhões de euros adicionais sobre os ombros dos consumidores. O atual ministro da Economia já reconheceu que, onde havia uma renda, ficou "renda e meia". Mas, como está à vista, a realidade é várias vezes pior. É por isso justificado que, além de uma contribuição sobre a renda excessiva cobrada pelas renováveis, se reponha a data prevista para o seu fim - 2020 e não 2027.
Como resulta claro, o artigo de Aníbal Fernandes não é, afinal, “em defesa das renováveis”. É um texto de parte interessadíssima na manutenção das rendas excessivas pagas às elétricas. Ora, a necessária promoção de novos avanços em tecnologias renováveis, tal como o apoio à produção solar descentralizada ou à eficiência energética, exige a libertação dos recursos que hoje se concentram nos lucros abusivos do setor elétrico. Que este tema se torne um debate nacional, eis o que realmente preocupa os rentistas.

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