De
tempos a tempos, perante acontecimentos que se vão sucedendo perante nós, até
aqui inimagináveis em sociedades democráticas, somos confrontados com a
probabilidade de termos atingido o “grau zero da democracia”. No entanto, mais
tarde, perante uma degradação democrática ainda maior perspectivamos que o
anterior “grau zero” pode aprofundar-se ainda mais, sem se perceber onde será
ou se haverá ponto de retorno.
Do
actual triste patamar que atingiu a degradação da democracia a nível global, muitos
exemplos se podem tirar mas, talvez fique para a história a situação que se
passa com as eleições presidenciais nos Estados Unidos, onde um dos candidatos
não garante que venha a reconhecer os resultados eleitorais caso não seja ele o
vencedor. Se isto acontece no país que se intitula o expoente máximo da democracia
no mundo, então, não será de admirar que a chefia do Estado nas Filipinas seja
ocupada por um “assassino confesso”.
Ainda
que não mereça a nossa concordância total, o seguinte texto, que retirámos do
Público de hoje, assinado por Vicente Jorge Silva, toca em pontos cruciais da degradação
democrática que se atingiu a nível global.
Que
uma personagem tão caricatural, execrável e inverosímil como Donald Trump possa
aspirar a ser Presidente da maior potência ocidental – e arraste atrás de si
tantos milhões de eleitores, embora insuficientes, felizmente, para
garantir-lhe a vitória – é um sinal alarmante da degradação da democracia na
América. Mas se pensarmos que esse sinal já se projecta noutras regiões do
planeta, desde a Ásia à própria Europa, então os motivos de preocupação ganham
proporções inéditas nas últimas décadas, mais concretamente desde o pós-Guerra.
No
Oriente, temos o caso extremo das Filipinas, em que um assassino confesso ocupa
a chefia do Estado, enquanto na Europa um pequeno déspota xenófobo é
primeiro-ministro húngaro – inspirando a orientação de vários governos do
centro-leste europeu – e a líder da extrema-direita ‘soberanista’ é dada quase
como certa na segunda volta das presidenciais francesas do próximo ano.
Estes
são apenas alguns exemplos de um panorama em que as tentações populistas e
autoritárias mais irracionais se multiplicam um pouco por toda a parte e o
desencanto com o legado democrático alastra entre populações onde ele parecia
mais fortemente implantado. Estaremos, assim, perante uma crise global das
democracias, um canto do cisne das promessas da globalização do mercado livre
e, por extensão irresistível, das sociedades abertas em que ele deveria,
supostamente, prosperar?
Ora,
precisamente, um denominador comum deste fenómeno é a tendência crescente para
o isolacionismo, o fechamento das fronteiras, o temor do estrangeiro –
alimentado, é certo, pelo terrorismo – e, last but not the least, a recusa da globalização.
Uma globalização que, cavalgando na onda do capitalismo financeiro e da
desregulação dos mercados, foi ampliando o número daqueles que dela se sentem
excluídos e vítimas, com ou sem razão objectiva – mas reféns de fantasmas que
os aprisionam nos seus medos.
É
o desnorte da globalização, com as suas insustentáveis assimetrias, que
favorece a emergência de um Putin – ou de um Trump. Não é por acaso que Trump
se mostra tão complacente ou mesmo cúmplice do instinto predador de Putin. Como
também não é por acaso que este se considera invulnerável na sua fuga para a
frente, na Ucrânia, na Síria ou na espionagem electrónica da campanha
democrática americana, canalizada para os falsos rebeldes e idiotas úteis da
Wikileaks. Eis o preço de um mundo desregulado e caótico.
A
8 de Novembro os americanos vão votar em dois candidatos nos quais, segundo as
sondagens, uma significativa maioria deles não confia. Trump é o que se sabe,
mas Hillary Clinton – que, em circunstâncias normais, deveria ganhar por
larguíssima maioria face a um perigoso marginal – não escapa ao estigma da
duplicidade, do cinismo e da promiscuidade de interesses que acabaram por
moldar o perfil mais sombrio da sua personalidade.
Casos
como os da Fundação Clinton, os milhares de e-mails
confidenciais enviados do seu servidor pessoal, as suas relações com Wall
Street e os poderes do dinheiro – de que agora tenta demarcar-se – tornaram-na
alvo da desconfiança popular, especialmente face a um eleitorado em guerra com
o establishment, e exposta, assim, à
vulgaridade obscena de Trump. Que este tenha, afinal, acabado por perder
definitivamente o pé por causa da divulgação de um vídeo de conteúdo sexista e
rasca, mostra o nível de alternativas políticas a que chegou a democracia
americana.
Se fosse americano, votaria
decerto em Hillary, mas por defeito. Para tentar escapar ao grau zero da
democracia que ameaça a América – e o mundo.
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