Está
ainda por fazer – sabe-se lá porquê – um debate nacional sobre o que significa
para os países membros da União Europeia a assinatura do CETA (Comprehensive
Economic and Trade Agreeement,
o tratado de livre comércio entre a União Europeia e o Canadá) assim como do
TTIP (Transatlantic Trade and Investimente Partnership na sigla europeia),
outro tratado de livre comércio, neste caso, entre a União Europeia e os
Estados Unidos que estará na calha do CETA.
A
opinião publicada sobre este tema tem sido escassa e, na maioria dos casos
pouco esclarecedora, de modo que não podemos deixar de aproveitar o texto que
Francisco Louçã assina no Público de hoje (*), com a sua característica linguagem
simples, acessível a qualquer pessoa menos introduzida nos meandros da economia.
Poderá
estar para acontecer que, mais uma vez, governos europeus estejam prestes a
assinar tratados contra os interesses dos seus povos e, para os quais não estão
mandatados. Toda a recente construção europeia se tem vindo a basear na falta
de respeito pela vontade dos povos, com os resultados que estão à vista. E parece
que ainda não se aprendeu o suficiente…
Salvo
imprevisível surpresa de última hora, a cimeira entre a União Europeia e o
Canadá prevista para 5ªf para assinar o CETA (Comprehensive
Economic and Trade Agreeement,
o tratado de livre comércio entre a União Europeia e o Canadá) não se
realizará. A partir daí, ou se abrem novas rondas de negociações sobre as 2344
páginas do tratado ou este morre já. Depois da provável boa notícia da anulação
da cimeira, o fim do tratado seria uma óptima consequência.
A
razão foi noticiada no PÚBLICO: Paul Magnette, o ministro-presidente de uma das
regiões da Bélgica, a Valónia, a parte francófona, liderou uma frente de
rejeição do tratado, incluindo os socialistas, como ele, e a maioria do
parlamento regional. Ele é, ao que se sabe, um defensor da globalização e mesmo
das regras financeiras que trouxeram a Europa até ao actual estado comatoso da
política e da economia, mas achou que assinar este tratado era ir longe demais.
Tem razão. Ora, como a Bélgica passou a conceder às suas regiões o direito
constitucional de bloquearem decisões nacionais deste tipo, a União Europeia
não conta com a unanimidade e não pode portanto realizar a cimeira para a
assinatura deste tratado.
Há
três razões principais para recusar o tratado, na opinião de
Magnette e de
outros críticos. A primeira é que este tratado prevê uma regra de protecção do
investimento externo que abre a porta a uma ofensiva de multinacionais contra o
direito de cada país. Esta regra é a das “expectativas legítimas”, permitindo
que uma empresa demande em tribunal um governo por uma lei ou deliberação que
prejudique a sua rentabilidade. Curiosamente, o Canadá tem essa experiência
amarga, porque empresas norte-americanas processaram o Estado canadiano por ter
proibido alguns químicos cancerígenos nos combustíveis. As empresas acusadoras
sentiram que os seus lucros poderiam diminuir por esse abuso. O mesmo dirá o
Uruguai, que foi processado pela Philip Morris porque a lei determinou que os
maços de tabaco teriam informação sobre os seus perigos para a saúde – e, isso,
como é bom de ver, pode diminuir o lucro da empresa (mas o Uruguai ganhou o
processo).
Esta
invocação de “expectativas legítimas” permite sobrepor o interesse económico de
uma empresa às regras ambientais ou sociais de um Estado soberano (ou pilhar os
seus recursos). Em Portugal temos um exemplo que nos indica por onde isto pode
ir, com a Bragaparques, que já recebeu o valor dos terrenos que tinha obtido na
Feira Popular, a reclamar da Câmara de Lisboa algumas centenas de milhões de
euros de lucros hipotéticos pelas operações que nunca realizou (mas o CETA é
pior, cria um regime jurídico especial para as empresas estrangeiras, os
“investidores”).
Por
tudo isto, a criação de um mecanismo de arbitragem com poder decisório é
crucial. Este mecanismo, no CETA, é um parente distante e até mais moderado do
que foi inventado pela Alemanha em 1959 e depois estendido a outros acordos de
comércio, e que prevê o procedimento de um tribunal arbitral para resolver, de
forma expedita, algum choque que possa ocorrer entre empresas investidoras
estrangeiras e governos nacionais. Mas não é um assunto fechado, porque agora o
próprio Tribunal Constitucional alemão condiciona a assinatura do seu governo à
eliminação deste mecanismo de arbitragem – a experiência conta.
A
terceira razão é a norma do CETA que determina que os governos abdicam do
direito de nacionalizar um serviço que tenha sido privatizado, como por exemplo
os Correios. Em nome da proteção da livre circulação de capitais, alguns
serviços públicos passam a ser extraterritoriais.
Sete
anos de negociações e chegamos aqui. Estava tudo pronto, todos os governos
disponíveis, a maioria do Parlamento Europeu apressada ao ponto de se definir
que o tratado entrava provisoriamente em vigor mesmo antes de ser ratificado
pelos parlamentos nacionais, estava tudo garantido. Só não se previa que um
socialista tivesse vergonha desta deriva. Se os leitores se perguntarem como é
que outros socialistas aprovavam esta aventura, só lhes posso lembrar tudo o
que a União Europeia tem sido até hoje. Mesmo quando aparecem frechas na
parede, com o vice-chanceler alemão a recuar quanto ao tratado semelhante
em negociação com os Estados Unidos, houve vinte e oito governos disponíveis para
a consagração da liberalização da finança. Não quiseram aprender nada desde o
crash financeiro de 2008. Cantando e rindo, a Europa vai sendo um pátio da
finança, salvo estes incidentes que lembram que ainda há quem resista.
(*) Retirámos todos os links
existentes no texto original
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