Há
no futebol português uma considerável manada de vacas sagradas. Se esta gente
der algum contributo, através dos clubes que representam ou da selecção
nacional, para encher o ego dos nossos cidadãos e compensá-los pelas muitas
frustrações com que todos os dias são brindados, tudo o resto é esquecido, por
mais graves que sejam os seus comportamentos. É claro que este esquecimento é
cultivado pelos grupos dominantes na nossa sociedade, muito mais interessados
em distrair os portugueses dos seus reais problemas do que em fazer cumprir a
lei, sem excepções e doa a quem doer.
Vem
esta conversa a propósito da chegada ao conhecimento público de uma alegada e monumental
fuga ao fisco por parte do ídolo dos ídolos do futebol português, nada menos
que Cristiano Ronaldo. Mas há mais. Inacreditavelmente, pouco se tem falado nestas
situações, tendo em atenção a sua gravidade, os personagens implicados e os
elevados montantes envolvidos.
De
louvar todos aqueles que colocam com força o dedo na ferida no sentido da
denuncia de uma situação escandalosa que devia ser tema de conversa dos
portugueses, muito mais os erros de arbitragem, tão em voga. É o caso do
seguinte artigo de opinião assinado por Manuel Loff no Público de ontem.
Ele “traz alegria a milhões de
pessoas", dizia Cavaco Silva quando entregou a Cristiano Ronaldo o grau de
Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, por “serviços relevantes
prestados a Portugal”. No pior da depressão económica e social que a nossa
memória futura confundirá com o próprio Cavaco, este assegurava que
"Ronaldo tem o condão de unir os portugueses, num tempo em que Portugal
tanto precisa da união dos portugueses. As vitórias de Ronaldo são as vitórias
da coragem de acreditar quando Portugal precisa de exemplos da coragem de
acreditar” (PÚBLICO, 20.1.2014). CR7 foi não simplesmente nacionalizado pelo
Estado português, mais ainda do que Salazar fez com Eusébio; soube ele próprio
transformar-se em objeto de adoração pública. Toda a sua vida é feita, por
opção própria, de uma obsessiva mediatização (TV, publicidade, revistas
cor-de-rosa) à escala planetária. Além de alimentar um desses egos desmesurados
(o mesmo que transparece em tudo quanto diz Mourinho-Special One,
outro offshorista, ou nessa plêiade dirigentes desportivos de mão na anca)
que pululam pelo futebol, a grande maioria dos seus rendimentos resulta, não do
seu apregoado talento desportivo, mas dos direitos de imagem. Segundo os
documentos revelados pela Football Leaks, trabalhados desde há um mês pela
European Investigative Collaborations (EIC), Ronaldo, que declarou ao fisco
espanhol em 2016 um património de 226,5 milhões € (omitindo tudo quanto terá em
paraísos fiscais), terá ganho em 12 anos de direitos publicitários pelo menos
150 milhões (coisa pouca: o valor de 1,5 Casa da Música do Porto, por exemplo).
Destes, graças ao esquema de fuga aos impostos arquitetado pelo seu agente,
Jorge Mendes, declarou apenas 22,7 milhões, dos quais pagou ao fisco 5,6
milhões (El Mundo, 3.12.2016).
Faça contas o leitor a quanto paga ao
fisco como assalariado; e agora veja bem quanto pagou em impostos aquele que se
faz passar pelo "desportista mais solidário do mundo" com 22 contas
na Suíça: 4%! Se 24% a 26,5% deste dinheiro terá ido parar, como comissões, a
duas empresas de Jorge Mendes, o "padrinho" de Ronaldo, de Mourinho e
de tantos outros jogadores "heróis" do futebol, é porque Ronaldo
acha-o um destino claramente melhor do que cumprir com as suas obrigações
fiscais perante o Estado e a sociedade. O "Senhor 10%", o
"melhor agente do mundo" para os Globe Soccer Awards, é
"padrinho" também, entre muitos outros, de 10 dos 23 jogadores da
Seleção Nacional (entre eles, Ricardo Carvalho, Fábio Coentrão e Pepe, todos
sob investigação fiscal e judicial), de todos os selecionadores nacionais entre
2003 e 2014, da candidatura de Luís Figo (outro "herói" de fiscalidade
duvidosa) à presidência da FIFA. Só em direitos comerciais, Mendes terá um
rendimento anual de 160 milhões. Em 2013, o seu património estava avaliado em
536 milhões € (Le Monde, 4.12.2016). Ele é outro destes
"heróis" empolados pelos media e pelo Estado, que, das
impolutas mãos de Miguel Relvas, recebeu em 2012 o Colar de Honra ao Mérito
Desportivo pela sua "competência, dedicação, ética de trabalho [!!] e
espírito empreendedor". É o Estado que quer que nos revejamos nestes
exemplos do “'talento' que fala português"! Foi desta forma que, em 2007 e
2013, as campanhas oficiais de promoção de Portugal no estrangeiro apresentaram
Mourinho e Ronaldo.
Há um mês que tudo isto rebentou na
imprensa internacional. Entre nós, o Expresso, preocupado em
garantir que não queria "destruir ídolos nem desconstruir campeões"
(P. Santos Guerreiro, 7.12.2016), encheu duas edições semanais com estas
revelações. A imprensa desportiva praticamente ignorou-as, as TVs deram
incomparavelmente mais relevo à enésima Bola de Ouro de CR7 (descrita como
"resposta" à "campanha" que contra ele teria sido montada)
ou ao seu "quem não deve não teme" (RTP, 7.12.2016) do que à
demonstração de que nenhum destes "heróis da bola" é eticamente
diferente dos agora odiados Ricardo Salgado ou José Sócrates. A impunidade
deles, que parece longe de ter cessado, é em grande medida produto da retórica
que Cavaco usou quando dizia que "quando [o "CR7] entra em campo, tem
a seu lado dez milhões de portugueses."
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