O
texto que apresentamos a seguir constitui um artigo que tem por base uma intervenção
do deputado bloquista, João Vasconcelos, num debate no Parlamento.
Reconhecimento do direito de Associação Profissional
dos Militares
Evocação
do 15.º Aniversário das Leis Orgânicas de 2001
Enquadramento histórico
Foi no contexto da Revolução Industrial que surgiram
as movimentações sociais operárias na Europa durante o século XIX e que
confluíram tanto no sindicalismo, como nos movimentos socialistas.
Os operários, face às duras condições de trabalho em
que viviam, adquirem a chamada consciência de classe e começam a fundar as suas
associações socioprofissionais e sindicatos. De um modo geral, estas estruturas
sindicais deixam-se influenciar pelas correntes socialistas, o marxismo, o
anarquismo e outras.
Embora semelhantes, “sindicalismo” e “associativismo
profissional” apresentam algumas diferenças. Enquanto o sindicalismo apresenta
conotações políticas, com o recurso à luta de classes e à greve para melhorar
as suas condições, o associativismo não recorre à greve, de um modo geral,
fomenta a coesão e o prestígio da instituição a que pertence e procura acima de
tudo, melhorias socioprofissionais.
Foi nos finais do século XIX que surgiu o
associativismo militar no norte da Europa, em países como a Holanda, Suécia e
Noruega. A nível internacional, ao longo deste século vão surgindo normas que
reconhecem aos membros das Forças Armadas direitos iguais aos seus cidadãos,
embora com algumas restrições. Assim temos:
- A Carta de Princípios da OIT, a partir da Declaração
de Filadélfia de 1944 e de onde vão surgir várias Convenções em 1948, 1949 e
1978, sobre o princípio da liberdade e negociação coletiva, sobre o direito de
organização e fixação das condições de trabalho.
- O Conselho da Europa adotou em 1950 a Convenção para
a proteção dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais.
- Ainda sobre os direitos humanos, temos os Pactos
Internacionais sobre os Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos económicos,
Sociais e Culturais, em 1966. Em todas estas normas há restrições aos militares
e polícias no que concerne ao direito de reunião e de associação sindical.
Mas foi em 1984 que o Parlamento Europeu aprovou uma
Resolução, o “Relatório Peters”, apelando para que todos os Estados membros da
Comunidade concedessem aos militares o direito de aderir e participar em
associações profissionais para defenderem os seus direitos sociais.
Em 2006, a Assembleia Parlamentar do Conselho da
Europa aprovou uma Recomendação, o “Relatório Apenes”, considerando que os
membros das forças armadas são cidadãos em uniforme, e que devem usufruir das
mesmas liberdades fundamentais estabelecidas na Convenção Europeia de Direitos
Humanos e na Carta Social Europeia, embora “dentro dos limites impostos pelas
exigências específicas dos deveres militares”. Nota-se assim, uma preocupação
na Europa com os direitos dos militares, procurando uma aproximação com os
direitos dos demais cidadãos.
Exemplos de associações
socioprofissionais militares na Europa
Foi na Holanda que surgiu o associativismo militar em
1897. Os militares têm direito à greve, mas os direitos encontram-se
restringidos por regulamentos militares. Na atualidade o direito à greve
encontra-se limitado.
Na Noruega foi criado um sindicato militar em 1835 (o
mais antigo). Não há diferenças entre funcionários civis e militares e o
direito à greve não é reconhecido.
Na Suécia há sindicatos militares desde 1907, ligados
à função pública e podem fazer greve.
Na França, Grécia e Itália o associativismo militar
apresenta grandes limitações e só nos finais dos anos 90 do século passado é
que foram constituídas associações profissionais de militares.
Em Espanha o associativismo militar só vingou em 2002,
a reboque de uma Lei orgânica para todos os funcionários públicos.
Na Alemanha existe apenas uma única associação
profissional de militares, com grande prestígio, integrando militares de todas
as categorias, assim como os familiares civis a prestar serviço nas forças
armadas. Não é permitido o direito à greve aos militares e aos funcionários
públicos que pertencem às forças armadas.
Desde 1973 existe a EUROMIL, uma organização não
governamental que representa os interesses sociais e profissionais dos
militares na Europa, fundada por 5 países – Alemanha, Dinamarca, Holanda,
Bélgica e Itália. Conta atualmente com cerca de 40 associações de vários
países, incluindo Portugal, representando mais de 500 mil militares.
O associativismo militar em
Portugal
No nosso país o associativismo no seio dos militares
surgiu tardiamente, mais propriamente a seguir ao 25 de abril de 1974. Temos o
período revolucionário de 1974 e 1975 em que surgiram comissões de praças e de
sargentos, e os SUV (Soldados Unidos Vencerão), que conduziram a movimentos de
grande contestação no seio das forças armadas. Foram feitas reivindicações por
aumentos salariais, atualização das pensões de sobrevivência, a redução do
limite de idade para a reforma e até a recusa em embarcar para as ex-colónias.
Ocorreu assim a democratização das forças armadas num período bastante vivo da
nossa História.
A seguir ao 25 de novembro de 1975 e até 1982 não são
conhecidas situações de associativismo profissional no seio dos militares. No
ano de 1982 é aprovada a Lei n.º 28/82, de 11 de dezembro – a Lei de Defesa
Nacional e das Forças Armadas (LDNFA) e que ficou envolta em polémica, pois
mereceu o veto presidencial do General Ramalho Eanes, alegando que a lei vedava
aos militares direitos considerados fundamentais, nomeadamente o que consignava
o artigo 31.º (Restrições ao exercício de direitos por militares). Com efeito,
era restringido o exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação,
associação e petição coletiva e a capacidade eleitoral passiva de militares.
O próprio deputado Jorge Sampaio, na altura,
considerou que as restrições previstas no artigo 31.º estavam para além do que
estipulava a Constituição da República Portuguesa no seu artigo 270.º
(Restrição ao exercício de direitos). O referido artigo frisa que a lei pode
estabelece essa restrição, não considerando como uma restrição absoluta.
A partir de finais dos anos 80 são criadas várias
associações profissionais entre os militares: Associação de Militares na
Reserva e na Reforma (ASMIR), em 1987; Associação de Oficiais das Forças
Armadas (AOFA), em 1992; também foram criadas a Associação de Praças (AP), a
Associação Nacional de Contratados do Exército (ANCE), a Associação de Deficientes
das Forças Armadas (ADFA) e várias outras Associações ligadas aos Antigos
Combatentes, a Associação de Fuzileiros Deficientes das Forças Armadas,
Graduados em Sargento-Mor, etc.
Só que sobre estas associações pairava o artigo 31.º
da LDNFA, pelo que a sua atuação não era enquadrada por qualquer regime
jurídico específico, o que restringia de forma grave os direitos dos militares.
Só em 2001 é que a situação foi alterada – há 15 anos
atrás – com a publicação, pela Assembleia da República, da Lei orgânica n.º
3/&2001, de 29 de agosto (Lei do direito de associação profissional dos
militares); e a Lei Orgânica n.º 4/2001, de 30 de agosto, que procede à sexta
alteração à LDNFA, modificando o artigo 31.º e autorizando o direito à
constituição e integração de associações profissionais por parte dos militares.
Ainda em 2007 foi reforçado o associativismo militar
com a publicação do estatuto dos dirigentes associativos das associações
profissionais das Forças Armadas, e em 2009 foi publicada a Lei de Defesa Nacional
(LDN) que revogou a LDNFA de 1982.
Com o anterior governo do PSD/CDS verificou-se um
retrocesso a nível do associativismo no sei dos militares com a publicação do
EMFAR (Estatuto dos Militares das Forças Armadas), que este governo ainda não
revogou, ou alterou significativamente.
O processo legislativo de
2001
Foram várias as iniciativas legislativas que deram
origem às Leis Orgânicas de 2001:
- Projeto de Lei 430/VIII, referente ao
“associativismo militar” (PSD), aprovado por PS, PSD e CDS/PP, com abstenção de
PCP, PEV e BE.
- Projeto de Lei 14/VIII, que “altera o regime de
exercício de direitos pelos militares” (PCP), aprovado por maioria, com a
abstenção do PSD.
- Projeto de Lei 394/VIII, que “altera a Lei de Defesa
Nacional e das Forças Armadas” (CDS/PP), aprovado por unanimidade.
- Projeto de Lei 428/VIII, “capacidade eleitoral dos
militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em efetividade de
serviço e exercício dos cargos políticos para que sejam eleitos” (PSD),
aprovado com abstenção de PCP, PEV e BE.
- Projeto de Lei 429/VIII, “alteração do artigo 31.º
da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas” (PSD), aprovado com a abstenção
de PCP, PEV e BE.
- Proposta de Lei 71/VIII, que “altera o artigo 31.º e
adita os artigos 31.º - A a 31.º - F da Lei n.º 29/82 (Governo), aprovado por
unanimidade.
Estes documentos legislativos baixaram posteriormente
à Comissão de Defesa Nacional dando origem às Leis Orgânicas citadas.
O artigo 31.º da LDNFA manteve-se em vigor durante 19
anos, apesar da aprovação dos Relatórios “Peters” e “Apenes”, e da Comissão
Parlamentar de Defesa Nacional receber ao longo de mais de 10 anos as
associações militares para apreciar questões de natureza socioprofissional e
não apenas meramente deontológicas.
O artigo 31.º de 1982, após a primeira revisão
constitucional, surgiu num contexto político adverso e até de confronto com os
militares. Foi aprovado por PS, PSD e CDS/PP e muitas vozes se levantaram
contra, incluindo o Presidente Eanes e o deputado Jorge Sampaio, como se
referiu anteriormente. Era sem dúvida, um artigo retrógrado, contrário à
afirmação dos direitos humanos no seio da instituição militar.
Os direitos dos militares deviam e devem ser exercidos
nos termos constitucionais, em que as suas limitações devem circunscrever-se na
estrita medida, conforme consigna a Constituição, obedecendo aos princípios da
necessidade e da proporcionalidade, não podendo diminuir o alcance e a extensão
dos direitos, liberdades e garantias.
Os Projetos do PCP e do Governo foram positivos e até
avançados, acontecendo em parte com a iniciativa do CDS/PP. Já não de pode
dizer o mesmo com os Projetos do PSD. As iniciativas legislativas desta força
política proibiam as associações de militares contratados, limitava fortemente
o poder representativo das associações junto da hierarquia militar, só
permitindo reuniões nas respetivas instalações, excluía as matérias
remuneratórias e enchia as associações de proibições.
No que se refere às isenções, só têm sentido a isenção
político-partidária, como preconiza a Constituição, assim como o sigilo
decorrente da classificação de documentos para garantia dos interesses da
Defesa Nacional. O sindicalismo militar devia ser uma realidade entre os
militares, tal como acontece em muitos países da União Europeia. Não tem assim
sentido diabolizar o sindicalismo no seio dos militares.
Outra questão prende-se com a participação dos
militares em atividades políticas, só sendo permitido desde que usem traje
civil. Assim como a “condução da política de defesa nacional”, em que os
militares não podem tecer comentários. Será para impedir críticas à hierarquia
superior? Parece que sim, o que não deixa de ser limitativo da liberdade de
expressão.
De qualquer forma, as Leis Orgânicas de 2001
representaram um importante avanço democrático no que se refere ao
associativismo socioprofissional dos militares.
A situação atual
No presente momento, constata-se que o atual governo
ainda não reverteu algumas normas aplicadas pelo anterior governo PSD/CDS e que
condicionaram, de forma grave, o desenvolvimento normal do associativismo
socioprofissional dos militares, em que as importantes Leis Orgânicas citadas
não são cabalmente cumpridas. É tempo da esperança anunciada por este governo
também se fazer sentir entre os militares.
O Bloco de Esquerda, dentro das suas possibilidades e
conhecimento, tudo fará para afirmar e concretizar essa esperança.
Observação: Declaração proferida, em nome do Bloco de
Esquerda, na Assembleia da República, no passado dia 7 de dezembro de 2016, na
Sessão Evocativa do “15.º Aniversário das Leis Orgânicas”, organizada pela
Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA), Associação Nacional de
Sargentos (ANS) e Associação de Praças (AP).
João Vasconcelos
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