Como
se costuma dizer, por vezes há males que vêm por bem.
O
recente caso da acusação a dezoito agentes da PSP, entre os quais um chefe, dos
“crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física qualificada, agravados pelo ódio e discriminação racial contra seis jovens da Cova da Moura, na Amadora”, teve o mérito de trazer mais uma vez ao debate público o problema
da discriminação racial existente em Portugal ainda que se diga que tal questão
não existe entre nós.
Muito se tem escrito sobre este tema na comunicação
social e ainda bem.
O texto seguinte é um artigo de opinião que
transcrevemos do Público de hoje, assinado por Marta Araújo, Investigadora
Principal do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
O modo mais simples de compreender a
institucionalização do racismo é através do que Luh Souza e Francisco Antero,
activistas brasileiros, designaram como “Teste do Pescoço”: espreita-se pela
porta do hospital e calculam-se os médicos negros; estica-se o pescoço na joalharia
e procuram-se empregados de balcão negros; coloca-se o pescoço numa reunião
partidária e contam-se os negros em posições de destaque; ou vê-se quantos são
docentes numa universidade reputada. Sendo este teste suficiente para mostrar
que o racismo não pode ser reduzido ao preconceito ou a casos isolados, tal
parece não surtir tanto efeito a nível político e institucional.
Quando foi divulgado o relatório da
Comissão para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas sobre
Portugal, em Dezembro de 2016, ficou mais uma vez evidente que existe uma
recusa tácita do Estado português em tomar medidas eficazes para avaliar (e
combater) a discriminação étnico-racial; em particular, a não publicação de
dados para efeitos de monitorização das desigualdades. A publicação destes
dados tem sido realizada em diversas sociedades em âmbitos como a educação, o
emprego, a habitaç��o, a justiça e a saúde, de modo a examinar a extensão do racismo e a sua
evolução no tempo em função de políticas públicas concretas. A recusa do Estado
português nesta matéria foi denunciada repetidamente na última década e meia
pela Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância e pela Agência dos
Direitos Fundamentais da União Europeia — com indicações precisas de como
proceder a essa recolha respeitando a legislação em vigor.
Quando confrontado com a sua inoperância
nesta matéria, a resposta do Estado português — na figura do Alto Comissariado
para as Migrações — foi, mais uma vez, lacónica: a recolha de dados “colide com
a Constituição” e “viola” a legislação de protecção de dados pessoais. Em
primeiro lugar, o que está em causa são dados recolhidos de forma informada e
voluntária e respeitando o princípio da auto-identificação. Tal não vai contra
o princípio da igualdade consagrado na Constituição da República nem contra a
legislação sobre a protecção de dados pessoais em vigor (Lei 67/98) — que permite
a recolha de “dados sensíveis”, desde que “com garantias de não discriminação”.
A lei considera também que a recolha destes dados se justifica em situações de
interesse público, devendo ser consentida pelo titular e os dados anonimizados.
Em segundo lugar, e apesar do que se
alega, esta recolha tem sido feita em Portugal. Terá o Alto Comissariado
esquecido que a confissão religiosa é um dado “sensível” recolhido nos censos
nacionais desde 1981? E que, na educação, dados estatísticos desagregados por “grupo
cultural” (concebidos como indicadores étnico-raciais) foram recolhidos pelo
respectivo Ministério entre 1991 e 2000, e publicados pelo Secretariado
Coordenador dos Programas de Educação Multicultural (o Entreculturas)? Tais
dados foram mostrando a existência de taxas de aproveitamento escolar
desiguais, sem que se tenham desenvolvido iniciativas públicas dirigidas a esta
questão que não as formas costumeiras de multiculturalismo festivaleiro no
salão polivalente. A recolha de dados pelo Ministério da Educação continuou
entre 2001 a 2004, até o PCP intervir após tomar conhecimento sobre como se
inquiria essa informação aos encarregados de educação (por exemplo, não se
podia ser cigano e português). Foi interrompida a recolha — ou não?
O Programa Escolhas — a iniciativa
coqueluche do Estado em matéria de intervenção social junto dos jovens,
coordenado durante muitos anos pelo alto-comissário, Pedro Calado — requer
esses dados das associações candidatas a financiamento, sob o alibi da
caracterização do “público-alvo”. Isto é, continuam a recolher-se os dados sem
que eles sejam tornados públicos, utilizados para analisar o efeito das
iniciativas políticas nas desigualdades étnico-raciais, ou para diagnosticar
esferas de intervenção prioritária. Tal constitui o que David Gillborn
denominou de racialização ilegítima: o discurso usa categorias raciais sem se
comprometer com a igualdade.
Em terceiro lugar, o argumento que a
publicação dos dados produz discriminação. No contexto britânico dos anos 1970,
as estatísticas raciais sobre criminalidade foram amplamente usadas pela
polícia e pelos media, ajudando a sustentar noções racistas. Face a esta
discriminação, historicamente enraizada, foram os próprios movimentos sociais
de base que usaram esses dados para demonstrar a existência de racismo
institucionalizado, que se repercutia no tratamento policial discriminatório
através da prioridade dada à vigilância de pessoas com certos perfis raciais (e
não só, como no acesso à saúde e à habitação, no sucesso educativo e no mercado
de trabalho). Vemos assim como os números podem servir fins políticos
diametralmente opostos, e que têm sido as próprias populações racializadas a
exigir a sua publicação como uma forma de responsabilização pública — em
contextos diversos como a Austrália, o Brasil, os Estados Unidos ou a África do
Sul. Em Portugal, a publicação destes dados foi reivindicada numa carta enviada
às Nações Unidas, em finais de 2016, por 22 associações de afrodescendentes.
A publicação de dados desagregados por
pertença étnico-racial torna evidente que o combate ao racismo não pode estar
centrado na vigilância do “outro” (o negro, o cigano, o imigrante), mas na
monitorização da acção do Estado face à sua institucionalização. Numa
democracia assente numa política de transparência e comprometida com os
direitos fundamentais, a figura do guardião de números é obsoleta.
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