É
do conhecimento geral que para o PCP o Bloco de Esquerda é uma pedra no seu
sapato. Isto não devia acontecer mas é uma realidade. Os comunistas não entendem
que a sua votação pouco cresceria se o BE não existisse mas não é possível convence-los
de que o seu raciocínio está errado. Vai daí, a sua aversão pelo Bloco não é
menor que pela direita. E demonstram-no com alguma frequência como que para não
deixarem dúvidas. Por exemplo, aquando da constituição da “geringonça” exigiram
negociações separadas com o PS sabendo-se que isso enfraqueceria esta fórmula
de Governo e daria trunfos á direita. Mas não se importaram. Para além disso,
de vez em quando, lá espetam uma alfinetada no Bloco que, muito bem, não
responde.
Deixando
para trás as ditaduras e amigos pouco recomendáveis que o PCP, numa manifestação
de incoerência defende com frequência, o recente episódio da recusa do
presidente da Junta de Freguesia de Cabeça Gorda (gerida pela coligação CDU) em
autorizar o enterro de um cidadão de etnia cigana no cemitério daquela
freguesia constitui uma nódoa muito forte na história da luta do PCP contra a
discriminação e racismo.
Por
outro lado, o Bloco de Esquerda, demonstrando, mais uma vez, as suas posições
contra situações de racismo, venham elas de onde vierem, apresentou, muito coerentemente,
na Assembleia da República, “um voto de protesto condenando a atitude do
presidente da Junta de Freguesia de Cabeça Gorda”. A reacção descabelada do
PCP, através do seu deputado João Oliveira, não se fez sentir e é essa situação
que serve de tema ao artigo de opinião que o antigo dirigente do Bloco, João Semedo
assina no Público de hoje.
Fiquei surpreendido com o tom e a
violência do ataque ao Bloco de Esquerda protagonizado pelo líder parlamentar
do PCP, João Oliveira, no último plenário da Assembleia da República, a
propósito de um voto de protesto apresentado pelo BE, condenando a atitude do
presidente da Junta de Freguesia de Cabeça Gorda (Beja), por este não ter
autorizado o enterro de José António Gaspar Garcia, um cidadão de etnia cigana,
no cemitério daquela freguesia. João Oliveira acusou o Bloco de “mentiras,
deturpação e falsificação”.
Estranhei, sim, apesar de não
desconhecer a tensão que os comunistas, muitas vezes, colocam na sua relação
com o Bloco. Mas foi evidente que tanta agressividade pretendia esconder a
fragilidade dos argumentos a que João Oliveira recorreu para tornear, iludir e
redesenhar a realidade dos factos. Motivado pela estranheza, informei-me com
detalhe, li tudo o que foi publicado e tudo o que escreveram ou disseram os
envolvidos.
João Oliveira, num tom exaltado, repetiu
ipsis verbis a argumentação que constava do esclarecimento enviado pelo
presidente da junta de freguesia à Assembleia, na véspera do debate
parlamentar, mais precisamente às 20h21min! Registo que esta informação — 18
dias depois do sucedido — constitui a primeira e única posição pública do presidente
da junta de freguesia, o advogado Álvaro Nobre, apesar da dimensão pública e
mediática adquirida pelo caso.
Como se defende o presidente da junta e
como defende João Oliveira o presidente da junta? Dizendo que o cidadão José
Garcia não cumpria o regulamento do cemitério que restringe o direito a ser ali
enterrado aos “falecidos, naturais ou residentes na área da freguesia”.
Contudo, salta à vista que nem uma só
vez Álvaro Nobre escreve ou João Oliveira diz, explicitamente, que José Garcia
não residia em Cabeça Gorda, ideia que sugerem e insinuam mas nunca afirmam.
Percebe-se porquê, essa é a questão central e sobre ela receiam ser
desmentidos: José Garcia estava recenseado e residia em Cabeça Gorda, com
afirma a família e garante a Associação dos Mediadores Ciganos.
Pergunto: por que não foram ver nem
falam no recenseamento? Será que se pode confiar menos no recenseamento da
junta do que na informação prestada pela agência funerária e usada como
justificação por Álvaro Nobre, segundo a qual José Garcia residia em Pias?
Dizem João Oliveira e o presidente da
junta de freguesia que não há, na junta, qualquer registo de que José Garcia
tenha recorrido aos apoios sociais ali prestados. Mas desde quando é que os
fregueses têm a obrigação de recorrer aos serviços da sua junta? E não
existindo essa obrigação, como pode concluir-se que o cidadão José Garcia não
residia em Cabeça Gorda?
O presidente da junta e, também, João
Oliveira sabem onde José Garcia nasceu (Mértola), onde morreu (Moura, no centro
de saúde) e, até, onde tinha uma casa arrendada (Pias). Mas não sabem, numa
freguesia que tem 1380 habitantes, que aquele cidadão aí residia há cerca de
dois anos.
Por último, o que Álvaro Nobre e João
Oliveira não dizem e, aliás, escondem. O regulamento do cemitério de Cabeça
Gorda é muito claro: permite enterrar pessoas de fora da área da freguesia
“mediante autorização do presidente da junta de freguesia”. Portanto, o
presidente podia ter autorizado mas não autorizou. Se podia, por que não
autorizou? Este é o ponto.
Atitude bem diferente teve o presidente
da Junta de Salvada e Quintos — também eleito pela CDU —, onde José Garcia
acabou por ser enterrado, certamente desrespeitando o regulamento do respectivo
cemitério. Será que Álvaro Nobre e João Oliveira vão apresentar queixa contra o
seu camarada por violação do regulamento?
Há certamente comunistas que batem nas
suas companheiras como, muito provavelmente, há em todos os partidos. E como é
evidente isso não belisca nem diminui o papel do PCP no combate à violência
doméstica. O que se passou em Cabeça Gorda não autoriza ninguém a acusar o PCP
de racismo e discriminação contra a comunidade cigana, nem era isso que estava
em discussão no Parlamento. O que se discutia era a decisão do presidente da
Junta de Cabeça Gorda de recusar o enterro de um cidadão cigano quando até o
regulamento lhe permitia decidir o contrário.
As palavras de João Oliveira, desculpando um comportamento
indesculpável e justificando o injustificável, colidem frontalmente com a
tradição e os pergaminhos do PCP na luta contra o racismo e a discriminação. O
impulso para zurzir no Bloco falou mais alto na consciência de João Oliveira,
nem que para isso tenha precisado de proteger e branquear uma atitude
condenável. Sobre mentiras, deturpação e falsificação, estamos conversados.
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