A existência de “interesses partidários
na base das nomeações para a administração pública” constitui uma evidência
para o comum dos portugueses mas não há como uma investigação com base
científica para tirar quaisquer dúvidas. Foi o que aconteceu na sequência de um
trabalho de doutoramento realizado no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território (DCSPT) da Universidade de Aveiro (UA).
Este trabalho de doutoramento serviu de
tema para o excelente artigo que o historiador Manuel Loff assina no Público de
hoje. Embora longo é um texto que vale a pena ler.
Uma investigadora da
Universidade de Aveiro, que estudou o fenómeno da Patronagem e Governos
Partidários em Portugal no período 1995-2009, concluiu que “as nomeações
para a cúpula da administração pública em Portugal são influenciadas por
interesses partidários para recompensar serviços prestados ao partido do
poder.”
Patrícia Silva documenta
aquilo que já conhecíamos: que se “utilizam as nomeações” para “gabinetes
ministeriais, serviços periféricos da administração pública, bem como para
posições menos visíveis, mas igualmente atrativas do ponto de vista financeiro”
(“cargos em embaixadas” e “na estrutura diretiva das empresas públicas”), “como
uma forma de recompensa por serviços prestados anteriormente ou em antecipação
aos mesmos, esperando-se que a filiação partidária ou o relacionamento pessoal
com o ministro sejam centrais neste processo”. O que ocorre em Portugal é a
“colonização partidária da administração pública”, um fenómeno que designa como
“patronagem” e que “pode ser parte do problema em termos dos desafios da
qualidade da democracia”
É este um
fenómeno novo, exclusivamente português? Corresponde apenas ao período estudado
ou carateriza o sistema político português? É um fenómeno do regime democrático
ou de toda a experiência histórica do Portugal contemporâneo? A resposta é
relativamente fácil: não, o fenómeno é tudo menos novo, é tudo menos
exclusivamente português e é intrínseco à natureza da sociedade capitalista. Em
todos os países onde se abriu caminho ao Estado liberal (sempre incompletamente)
representativo, a lógica da patronagem de tipo partidário instalou-se: os
partidos do poder, enquanto estruturas de articulação de diferentes segmentos
das elites sociais e económicas, na qual Estado e mundo dos negócios operam
numa integração sistémica, organizaram-se em redes de prestação de favores
entre os que vão sendo cooptados para ascender à administração central do
Estado e aos lugares de topo das grandes empresas e aqueles que operam como
caciques à escala local e regional. Desta forma se corrompeu sempre o princípio
da neutralidade do Estado face aos atores sociais, cujos funcionários deveriam
ser recrutados segundo processos rigorosos de avaliação de competências, e se
privilegiou o recrutamento de apaniguados numa lógica que, usando sintomaticamente
uma retórica empresarial/futebolística, quer-nos convencer que a eficácia da
aplicação de políticas públicas depende da formação de equipas ideológica e
socialmente homogéneas, recrutadas pela cunha. Era assim já nos governos do
liberalismo oligárquico, em especial os do rotativismo (1851-1910), em que rodavam
no poder dois partidos que dominavam o sistema, de composição social muito
semelhante e, consequentemente, com programas políticos praticamente idênticos.
Triunfavam então (e hoje também) os condes de Abranhos, balofos e ambiciosos,
que Eça tão bem descreveu. As coisas só podiam piorar num regime de partido
único como o salazarista: como sólida coligação dos vários segmentos dos grupos
sociais dominantes, a ditadura sustentou-se e renovou-se graças a um sistema de
patronagem muito eficaz, que premiava as fidelidades com lugares no Governo, na
Assembleia Nacional, nas vereações municipais, e, como hoje, principalmente nas
empresas e nos departamentos do Estado a partir dos quais se podia cobrar
favores, num esquema de corrupção generalizada que operava com a impunidade
própria das ditaduras, só muito rara e cirurgicamente reprimida para efeitos de
castigo da dissidência.
A Revolução e a democracia
obrigaram o Estado a assumir-se, finalmente, como agente do bem comum,
democratizando as suas funções, ampliadas a políticas sociais de alcance
universal na saúde, na educação, na segurança social, na justiça, que,
sustentadas no recrutamento de milhares de profissionais qualificados, forçaram
à introdução de um elevado grau de transparência (ainda assim, sempre
incompleta) sistematicamente posta em causa pelos interesses dos chefes
políticos de turno. A consolidação, desde 1976, da troika
de partidos (PS, PSD e CDS) que dominam o sistema político português permitiu a
gradual colonização desta nova administração pública por uma elite de políticos
puramente profissionais, os boys formados nas jotas,
cujo poder se reforçou com a ideologia da empresarialização do Estado: ataque a todas as
formas de gestão democrática do bem público, regresso a esquemas de
"coronelização 'gestionária' da ação política" (como lhe chamam os
investigadores franceses Laurent Bonelli e Willy Pelletier), típicos da
ditadura mas que se têm generalizado por todo os países onde se ataca o Estado
de bem-estar.
Se não é nova
a tensão entre o responsável político, que se diz eleitoralmente legítimo
(ainda que, salvo se deputado ou vereador, nem eleito tenha sido), e o
funcionário público que reivindica a sua autonomia face a estes novos profissionais
da política, é hoje particularmente chocante ver como estes últimos, de
formação muito duvidosa, impõem esquemas de avaliação de desempenho a que eles
próprios, produto de nomeações arbitrárias, não aceitam nunca submeter-se!
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