Há textos jornalísticos que se impõem
pelo conteúdo que versam, outros, pela sua qualidade literária e outros ainda, por
ambos os conceitos. Os textos de José Vítor Malheiros que podemos ler às
terças-feiras no Público enquadram-se neste último caso.
A rifa de carros “topo de gama” só
poderia mesmo ser uma ideia deste Governo, tendo em atenção a sua base ideológica.
Desde logo, é importante que façamos algumas reflexões para destaparmos as intenções
da equipa Passos/Portas: 1) O sorteio vai beneficiar, sobretudo, aqueles que
têm maior poder de compra, portanto, os mais ricos; 2) Esta perseguição aos pequenos
incumpridores fiscais tem como principal finalidade convencer a opinião pública
de que se está a combater a evasão fiscal quando se sabe que os grandes
tubarões da fuga ao fisco vão ficar de fora com a conivência do Governo; 3) Criar
junto dos cidadãos o hábito de esperar que o Estado lhes proporcione um
benefício pessoal em troca da fiscalização de uma obrigação que é de todos – o pagamento
de impostos – vai impedir que alguma vez se acabe com este método.
Mas o melhor é lermos o texto de Malheiros
que, como sempre, vai ao fundo da questão.
A
rifa do fisco que acaba de ser anunciada pelo secretário de Estado dos Assuntos
Fiscais, Paulo Núncio, onde são sorteados carros topo de gama entre os
consumidores que incluam os seus números de identificação fiscal (NIF) nos
recibos das suas compras, é mais um exemplo perfeito da forma como funciona o
Governo PSD/CDS: qualquer truque é aceitável desde que proteja os mais ricos,
permita um golpe de propaganda populista e distraia as pessoas dos seus
verdadeiros problemas, acenando-lhes com benefícios futuros que nunca vão
conquistar.
É
evidente que o preenchimento de milhões de recibos com o número de
identificação fiscal no momento do pagamento constitui uma perda de tempo
considerável para comerciantes e clientes. A Associação da Hotelaria,
Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) protestou aliás contra a medida,
tendo estimado que ela represente em 2014 uma perda de 130 milhões de horas de
trabalho para os seus associados. Mas o Governo não se incomodou com essa
circunstância porque os inconvenientes e as perdas resultantes da medida recaem
sobre a sociedade e as vantagens do golpe propagandístico serão colhidas pelos
partidos no Governo.
Quais
são as vantagens? Uma falsa aparência de combate à evasão fiscal e uma imagem
moralizadora. Porquê falsa? Porque os grandes evasores fiscais são as grandes
empresas e não os pequenos comerciantes, como toda a gente sabe, como os
especialistas não se cansam de alertar e como as organizações internacionais
que combatem a corrupção e a evasão fiscal denunciam. E porque os grandes
responsáveis pela evasão fiscal são precisamente os governos. De que forma?
Através dos tratamentos de excepção que concedem às grandes empresas e aos
grupos financeiros em particular, com o argumento de que é necessário ser
“fiscalmente competitivo” para atrair investimentos e para que as empresas
possam “criar empregos”. Com a autorização de paraísos fiscais como o offshore da
Madeira e todos os outros que existem na União Europeia e fora dela e fechando
os olhos às falsas “deslocações” de empresas para a Holanda e para outras
plataformas de lavagem de dinheiro.
Mas
é mais útil criar a ideia de que os comerciantes são os responsáveis pela fuga
ao fisco, que é principalmente através do IVA que isso acontece, que os
consumidores devem agir como fiscais das finanças e que o Governo é um campeão
da luta contra a evasão fiscal.
A
medida é moralmente retorcida por outras razões. Seria lógico e louvável que o
Estado (que é uma coisa diferente do Governo, ainda que este, ilegitimamente,
se apodere do património do Estado como se fosse seu) lançasse uma campanha
promovendo a moralidade do pagamento de impostos, que são a base do financiamento
dos serviços públicos, e incentivasse os cidadãos a cumprir as suas obrigações
fiscais. Mas é impossível fazer isso quando o Governo usa o Estado para roubar
os cidadãos e os submete a uma carga fiscal imoral para arrebanhar dinheiro
para pagar aos bancos uma dívida insustentável que deveria ter renegociado. De
facto, o Governo não pode usar um discurso moral sem que o país inteiro se
escangalhe a rir na sua cara e, por isso, a única forma que encontrou para
dizer aos cidadãos que devem pagar impostos foi dizer-lhes que com isso podem
ganhar um carro. É a mais venal das razões, mas essa é a única moralidade que
os membros do Governo conhecem.
Há
ainda outra razão imoral escondida: o bando que ocupa o Governo tem uma
dificuldade de raiz ideológica em construir um discurso em torno de conceitos
como comunidade, bem comum, serviços públicos ou património público e, por
isso, prefere incentivar o pagamento dos impostos através da possibilidade de
um benefício pessoal. Benefício pessoal é algo que eles percebem.
E
porquê o carro “topo de gama”? Porque não simplesmente um carro ou dez carros?
Porquê este conceito antiecológico que até fez a Quercus dar prova de vida e
vir a terreiro contestar (e propor um carro eléctrico)? Porquê? Porque estamos
a lidar com o PSD e o CDS, meus senhores, e não se pode pedir a uma rã que
cante Schubert.
Isto do
Governo tem-se vindo a degradar nos últimos anos e hoje temos no Governo a
maltosa dos carros “topo de gama”, o novo-riquismo em todo o seu esplendor, o
novo-raquitismo mental, analfabetos com botões de punho a condizer,
monogramados. Para um jota não há maior glória que parecer um catálogo “topo de
gama” e aparecer em revistas. Para um jota isso é a felicidade. Porquê a rifa
do carro “topo de gama”? Porque os jotas pensam que qualquer um pode ser
comprado com um carro “topo de gama” porque qualquer um deles se venderia
exactamente pelo mesmo preço. O carrito “topo de gama” é o alfa e o ómega da
carreira de um jota que se preze, é o simbolo de quem triunfou na vida, de quem
é “alguém”, caraças! Pai, já sou ministro! Pai, tenho um carro “topo de gama”!
Como os relógios e as marcas das camisas e os óculos “topo de gama” e tudo
“topo de gama”. Chegámos ao cume da governação rasca. Saiu-nos na rifa mesmo
sem dar o NIF. É preciso ter azar.
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