A
ordem instalada na União Europeia (UE) – dá vontade de lhe chamar tirania – faz
lembrar o romance de George Orwell “O triunfo dos porcos” onde a luta dos
animais de uma quinta contra a tirania dos homens leva os porcos ao poder. No
entanto, com o passar do tempo, a corrupção instala-se e surge nova tirania em
que o chefe passou a impor o princípio segundo o qual “todos os animais são
iguais mas alguns são mais iguais que outros”…
Este parece ser o princípio actualmente
seguido pelo directório europeu onde a prática leva a entender que na UE todos
os países são iguais mas alguns são mais iguais que outros.
O
regime de excepção atribuído recentemente ao Reino Unido é o último de muitos
exemplos da discriminação reinante entre os países constituintes da União, onde
os mais pobres são obrigados ao “respeito por regras” que supostamente deveriam
ser iguais para todos mas onde, ao mesmo tempo, os mais fortes estão dispensados
do seu cumprimento.
A
verdade é que o acordo alcançado na semana passada entre a UE e o Reino Unido
acaba por constituir mais um passo na desconstrução do projecto europeu em que
poucos já acreditam.
Uma
UE de senhores e outra de servos é o que José Vitor Malheiros denuncia no seu
artigo de opinião no Público de hoje, do qual retirámos os excertos seguintes:
O
acordo alcançado na semana passada entre o Reino Unido e os restantes
países-membros da União Europeia, que se saldou, segundo a declaração do primeiro-ministro
britânico, David Cameron, na atribuição de um “estatuto especial” para o seu
país (o Conselho Europeu chama-lhe “a new settlement for the UK
within the EU”),
constitui mais um prego no caixão da União Europeia, independentemente do
resultado do referendo britânico de Junho.
O
acordo veio provar mais uma vez que, no seio da UE, não existe igualdade nos
direitos dos Estados-membros e que não existe princípio plasmado nos tratados
que não possa ser esquecido ou modificado, se isso for feito para benefício de
um país rico e poderoso e para conveniência e reforço interno de um governo de
direita.
Mas
não é apenas o teor do acordo – que ainda não sabemos se e como será posto em
prática – que revela como esta União Europeia está disposta a abandonar algo
tão fundamental como o princípio da igualdade entre Estados. Também a forma
como a chamada “maratona negocial” decorreu mostrou uma organização opaca,
comandada por um directório político clandestino e por uma burocracia de
interesses inconfessados. De facto, apesar de a negociação ter sido anunciada –
e encenada – como uma discussão aberta entre o Reino Unido (de um lado) e os
dirigentes dos restantes 27 Estados da UE (do outro), que certos relatos
jornalísticos pretendiam fazer-nos imaginar sentados à mesa em mangas de camisa
durante 30 horas de acaloradas discussões e duras trocas de argumentos, o que
houve foi uma longa ronda de encontros bilaterais entre os grandes da UE e
apenas ocasionalmente com os médios, em que ainda não se conseguiu
perceber o que receberam em troca os países que começaram por se opor às
pretensões britânicas e que acabaram por as aprovar.
O
que é especialmente chocante é que as instâncias dirigentes da UE decidiram
ceder à chantagem britânica não porque houvesse de facto algum problema social
ou financeiro relevante no país devido à imigração em massa (que a direita
nacionalista britânica agita como principal papão e que Cameron decidiu abraçar
como causa própria por razões eleitoralistas), mas, simplesmente, porque isso
se transformou numa questão de sobrevivência para o Governo conservador.
De
facto, não há nenhuma urgência no Reino Unido que possa justificar a medida
excepcional agora tomada ou que se possa comparar, de perto ou de longe, à
importância da crise das dívidas soberanas dos últimos sete anos e à destruição
social e económica causada pelas políticas de austeridade. No entanto, a
propósito da Grécia, que continua a viver uma situação de emergência social, ou
de Portugal, a União Europeia não sentiu necessidade de considerar para estes
países nenhum “new settlement within the EU” e forçou-os a adoptar
políticas recessivas e de promoção da desigualdade sem quaisquer contemplações.
Como também não sentiu necessidade de adoptar quaisquer medidas vigorosas de
defesa dos direitos humanos – que deveriam ser a pedra basilar da União
Europeia – perante os desvios antidemocráticos de certos países (com a Hungria
de Viktor Orban à cabeça). Como também não sentiu necessidade de lançar (mesmo)
um programa de emergência de acolhimento dos refugiados de África e do Médio
Oriente e continua a arrastar os pés enquanto o Mediterrâneo se enche de
cadáveres. Como também não sente nenhuma pressão para construir uma política
externa que sirva os interesses da paz e do desenvolvimento, em vez de uma que
apenas serve os interesses hegemónicos dos EUA e dos fabricantes de armamento.
(…)
O
que este acordo vem mostrar de forma clara é a necessidade de reformar
profundamente a UE, não à medida do Reino Unido e apenas para que Cameron
consiga manter-se no poder, mas para podermos construir uma União Europeia
diferente, de igualdade e dignidade para todos os Estados e todos os cidadãos,
de direitos humanos e cultura, de democracia e desenvolvimento. Para isso será
preciso mais do que um conselho europeu com uma falsa maratona negocial. Para
isso será preciso partir o molde destes conselhos europeus que apenas reforçam
o poder dos directórios. Será preciso fazer um reset completo
do sistema.
Se o
referendo britânico de Junho ditar a saída do Reino Unido, talvez tenhamos uma
oportunidade de o fazer. Bem, desta vez.
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