Numa
altura em que acaba de ser aprovado o Orçamento do Estado de 2016, com o
suporte da esquerda parlamentar, não tenhamos a menor dúvida que os donos disto
tudo instalados em Bruxelas irão levar a cabo uma guerrilha permanente contra o
Governo português que teve a ousadia de, ainda que de forma muito tímida, pôr
no papel a intenção de iniciar uma política redistributiva ao contrário da
levada a cabo pela anterior maioria de direita. É este o ponto central do
artigo de opinião que Isabel do Carmo, Médica e Professora Universitária,
assina no Público de hoje e que transcrevemos em parte, a seguir.
Tanto
o Estado Social como o Estado Austeritário baseiam a sua estrutura
económico-financeira sobre os impostos. O que se tem que analisar é de quem
tiram e para onde tiram. E em qual dos conceitos é que se baseia o poder
instalado em Bruxelas e nos “mercados”, quando tomam a nova solução
governamental portuguesa como um inimigo a perseguir, tanto mais quanto pode
ser um mau exemplo.
O
fundamento do Estado Social estabelecido na Europa depois da II Guerra Mundial,
pelo qual lutaram trabalhadores e o Partido Trabalhista na Grã-Bretanha e os
Partidos Socialistas e Sociais-Democratas do Norte europeu, consiste numa forma
de redistribuição do rendimento em que se vai buscar impostos a um lado, para
tornar possível um Orçamento de Estado disponível para uma estrutura social com
saúde e ensino universais e gratuitos e uma segurança social assegurada. É uma
estrutura da sociedade que não é revolucionária, nem socialista, nem aspira ao
comunismo. É uma forma de compensar as desigualdades de nascimento, de família,
de habitação, que são de base no sistema capitalista em que vivemos. É esta
coincidência de propósito dos programas dos quatros partidos em acordo
parlamentar, embora com modos e tempos muito diferentes, que julgo estar na
base da governação possível. Mas a ordem mundial não está para Estados Sociais.
Após as turbulências dos anos sessenta e setenta do século XX, Margaret
Thatcher em 1979 e Ronald Reagan em 1980 iniciaram o contraciclo que se mantém
triunfante. Não é preciso detalhes para descrever os efeitos do reino da Wall
Street e da City, dos “mercados”, da concorrência, do individualismo, para a
vida quotidiana, o desemprego, a pobreza, a ansiedade das pessoas. Triunfou o
aprofundamento das desigualdades, no mundo e em cada país. A realidade está aí.
A União Europeia, que era um sonho do pós-guerra que não foi cumprido, teve a
mesma evolução. As suas estruturas e actores de topo estão lá como guardiães de
um mundo, que não vive para os seres humanos, mas sim para as mercadorias,
sendo que a mercadoria-dinheiro já não tem presença física, é virtual. Mas é
poder. Somos portanto governados à distância. Com o governo austeritário, os
impostos passaram a ter um grande peso sobre o rendimento do trabalho, as
pensões, as reformas, os funcionários públicos. Os cortes foram feitos nos
serviços de Saúde e na Educação. E serviram para pagar os juros da “dívida”,
para diminuir o “défice” (calculados como e quando?). Isto é, o circuito fez-se
ao contrário do da redistribuição social – tirou-se aos pobres e “remediados”,
que passaram a pobres. E deu-se a um poder mundial sem rosto.
E
é esta a ordem das coisas em Bruxelas, mesmo que haja contradições e alguns
executores sejam “socialistas”. Para a população, os impostos e os cobradores
de impostos passaram a ser o inimigo e desconfia cada vez mais do Estado,
grande parte não percebendo que a Saúde, a Educação e os seus agentes também
são Estado.
Com esta lógica, as propostas
da nova governação à esquerda só podem ser combatidas pelo poder centrado em
Bruxelas. Este Orçamento repõe os salários dos funcionários públicos e alivia
reformados e pensionistas. Aumenta o salário mínimo nacional. Dá um pouco mais
para a investigação em Ciência e Tecnologia e para o Ensino Superior, após os
grandes cortes anteriores. Em contrapartida taxa mais a banca e os Fundos
Imobiliários, que estavam muito aliviados de impostos. E taxa um pouco as
transacções financeiras, as tais que custam tanto quanto carregar num botão.
Aumenta as taxas sobre os automóveis e os combustíveis (que beneficiam da
descida do preço do petróleo) que são taxas ecológicas e sobre o álcool e o
tabaco que são impostos a favor da saúde. É pena não terem logo metido a
taxação sobre as bebidas açucaradas, medida que já foi tomada em vários países,
com reflexos sobre o seu consumo e sobre a prevenção da obesidade
infanto-juvenil. Neste caso, como no do tabaco e no código da estrada, não se
vai lá com “educação”. Vai-se com legislação. Este Orçamento de facto aumentou
alguns impostos, mas tirou de um lado para pôr no outro, ou seja do lado do
trabalho e dos mais desprotegidos. Tentou fazer o circuito de redistribuição ao
contrário do Governo anterior. Por isso sofre a perseguição de Bruxelas e
Schäuble e Dombrovskis têm a lata de falar publica e autoritariamente contra o
orçamento português, eles também “como donos disto tudo”. E quanto a alguma
comunicação social portuguesa, particularmente alguns canais de televisão, age
como inimiga declarada do governo, como delegada da ordem das coisas dominante.
Faz parte também desta perseguição que os “mercados” tenham subido os juros, só
para assustar.
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