Ainda
que não concordemos com o resultado do referendo britânico do passado dia 23 de
Junho, a verdade é que a sua democraticidade não está de modo nenhum em causa e
há que respeitar a vontade dos eleitores ingleses (a expressão aqui tem todo o
sentido). Aliás, é este respeito pela vontade de um povo, livremente expressa,
que parece estar atravessado na garganta da UE e dos burocratas que a
constituem.
O
mais importante em situações destas é conhecer por que razão, na sua
globalidade, o povo britânico votou da forma como todos sabemos.
Curiosamente
poucos analistas políticos referem que as zonas do país que votaram em elevada
percentagem o Brexit e fizeram com que esta opção vencesse são as mais
afectadas pelas políticas sociais implementadas a mando de Bruxelas. Foram os
mais pobres, os mais velhos e os socialmente mais vulneráveis que optaram pela
saída da UE, como demonstram os resultados da votação. É evidente que esta não
será a única causa mas é seguramente uma das principais. Que lição podemos,
então, tirar daqui? É que a Europa actual e as suas instituições perderam o
apoio de uma parte significativa das populações que deveriam defender.
Neste
texto que retirámos do Público de hoje, o autor (*), insuspeito de tendências radicais,
salienta, ainda que de forma pouco desenvolvida, as causas sociais do “Brexit”.
Samora
Machel, dos muitos dirigentes políticos que conheci o que mais me impressionou
pela sua vitalidade magnética, culpava os ingleses pela maioria dos males do
Mundo: o genocídio dos índios na América e dos aborígenes na Austrália, a
criação do Estado de Israel e do problema de Chipre, a guerra de secessão da
Índia, etc. Tudo curiosamente acompanhado por uma entusiasta admiração pela
governação determinada da Dama de Ferro, Primeira-Ministra britânica na época
em que o ouvi.
Hoje
Machel veria a sua tese confirmada pelo sarilho que os ingleses (e neste caso
são mesmo os ingleses) vieram acrescentar à presente imprevisibilidade da cena
internacional, com a escolha de deixar a União Europeia. Onde porventura nunca
devessem ter entrado, talvez Churchill e De Gaulle tivessem razão.
Mas
a diferença entre esses dois grandes estadistas e a actual liderança europeia
está neste referendo: Cameron prometeu este referendo como estratagema para
“salvar a pele” numas eleições com desfecho tremido e cedeu às pretensões dos
seus adversários, em vez de defender as ideias próprias e deixar os outros
levar avante aquilo de que discordava.
Abriu
a Caixa de Pandora com o cumprimento dessa promessa, cujas consequências estão
ainda longe de ser claras. Afectará quer a Europa, quer o Reino Unido, no plano
financeiro, económico e social (pela ordem destes factores na ordem dominante
do TINA (there is no alternative).
Contudo,
à Inglaterra traz ainda problemas políticos da maior gravidade, como a secessão
da Escócia, que poderá até parecer uma questão menor ao pé da tempestade que
arrisca vir a desenhar-se na Irlanda do Norte. Ambos estes países votaram
maioritariamente pela permanência na EU. Os “brexistas “ podem acabar por
perder o país que queriam recuperar.
Mas
o que me leva hoje a alinhavar estas linhas é a pouca atenção que me parece
estar a ser concedida, nas análises anteriores e posteriores ao referendo, em
relação a uma das causas da vitória da saída: a situação social do RU.
No
rescaldo da crise de 2008 o RU aplicou, com mais flexibilidade e menor fervor
ideológico que a Zona Euro, a política neoliberal dominante que, como disse o
Papa Francisco, erigiu o Dinheiro como novo Bezerro de Ouro ao qual se oferece
em sacrifício, apesar de tudo já não a vida, mas a qualidade de vida dos
cidadãos, (sim, bem sei, no caso britânico súbditos).
Se,
no plano dos indicadores macro-económicos, essa política produziu alguns
resultados, criou, na “Inglaterra profunda”, diversa da Londres cosmopolita,
entre a classe média baixa, sobretudo entre o que nos outros tempos se
designava como operariado, um também profundo sentimento de angústia,
vulnerabilidade e insegurança, face à persistente imobilidade dos salários e
consequente redução do poder de compra, ao aumento do emprego precário e
parcial, à ameaça ao Estado Social e ao aumento da desigualdade, de que Reino
Unido tem um dos mais altos índices da Europa. Não foi por acaso que o próprio
Osborne, um dos possíveis sucessores de Cameron, afirmou, no processo de
adopção do orçamento britânico, que o aumento de salários tinha de ser a
prioridade do próximo orçamento.
Como
sempre neste tipo de situações, além da União servir de bode expiatório,
desencadeiam-se sentimentos proteccionistas e xenófobos. Que se tenha dado
pouca atenção a este fenómeno denota a meu ver o papel diminuto que hoje se
atribui na economia (esta que mata, para voltar a citar Francisco) ao factor
trabalho.
É
essa angústia que levou o eleitorado trabalhista tradicional, aterrado pela
imigração, a votar “Brexit”, em oposição à orientação da liderança do Partido.
E que ninguém se iluda, é essa economia que, em nome de índices abstractos e
arbitrários está a trucidar as classes médias, quem alimenta os movimentos
extremistas e antieuropeus dos dois bordos, que vão despertando na Europa os
fantasmas da primeira metade do século XX.
Tiro
no Arquiduque?
(*) Fernando D’Oliveira Neves, Embaixador reformado
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