A
comunicação social portuguesa não fez uma cobertura da recente greve dos
estivadores do porto de Lisboa com a isenção que se impunha (e estamos a usar
as palavras mais brandas que é possível), havendo mesmo casos em que a intenção
foi denegrir a forma de luta extrema que aqueles trabalhadores usaram para defender
os seus postos de trabalho e a sua dignidade. Assistiu-se mesmo, em alguns
casos, a uma intoxicação deliberada da opinião pública no sentido de a greve
ser sabotada e não trazer quaisquer efeitos práticos para os anseios dos
estivadores. Não temos dúvidas de que o desfecho da luta destes trabalhadores
foi o que foi em virtude de se encontrar em funções um Governo ancorado à esquerda.
Outro galo cantaria se a maioria de direita continuasse alojada no poder…
O
texto seguinte é parte de um excelente artigo de opinião assinado por Raquel Varela
(*) que veio à estampa no Público de hoje. Chama-se a atenção para a sua
leitura porque clarifica muitos pontos ligados à recente greve dos estivadores
do porto de Lisboa.
Em
1889, Engels, depois da greve vitoriosa dos estivadores de Londres, comenta com
dois dos fundadores históricos da social-democracia, Kautsky e Bernstein: “É o
maior evento que aconteceu em Inglaterra desde as Leis da Reforma.” Porque se
os mais desorganizados e “desmoralizados trabalhadores do mundo” se organizaram
“é porque não devemos desesperar com nenhum sector da classe operária”.
O
Sindicato dos Estivadores de Lisboa protagonizou o mais importante conflito
laboral depois da crise de 2008, com um efeito de arrastamento para outros
sectores sindicais. Apesar disso os media
acompanham de forma sofrível os acontecimentos. Por exemplo, há duas décadas
que os estivadores não controlam a empresa de trabalho portuário, empresa
privada que faz a gestão da força de trabalho no Porto; os estivadores não
sabem o que está dentro de um contentor que carregam – sabem-no os operadores
privados. Se durante a greve chegaram à Madeira automóveis em vez de
medicamentos – e com o dinheiro dos nossos impostos foram levados medicamentos
por avião –, é aos privados que o determinaram que deve ser perguntado porquê.
E os salários? Um estivador que tenha trabalhado 16 horas por dia todos os dias
(como há e é usual!) chega ao final do mês e ganha 2000 euros líquidos. Ou
seja, trabalhou dois meses num. Há estivadores eventuais no porto a ganhar 188
euros por mês, 300, 700 euros.
A
greve iniciou-se no dia 20 de Abril de 2016 contra a lei dos portos, que abre
as portas à precarização do trabalho, rebaixando, pela ameaça do não trabalho
(desemprego) o valor salarial para em média 1/3. Terminou com um acordo, a 27
de Maio de 2016. Desse acordo resulta a celebração de um novo contrato
colectivo de trabalho (CCT) que deveria ser concluído no prazo de 15 dias. Esse
CCT incluirá obrigatoriamente cláusulas que implicam a desactivação da Porlis,
empresa de trabalho portuário que recorre a trabalho precário e mal pago, sem
os direitos laborais padrão, criada para concorrer com a AETPL, que emprega
estivadores profissionais com direitos. Quase 70 trabalhadores precários serão
gradualmente integrados como trabalhadores com contratos sem termo no prazo de
dois anos, incluindo os actuais trabalhadores da Porlis. A Porlis – empresa de
trabalho barato – é detida por 4 dos 7 sócios que detêm a empresa de trabalho
com direitos. O modelo é para ser aplicado noutros sectores do mercado laboral?
É este o milagre da “saída da crise” - uma sociedade que nem o trabalho com
direitos assegura (que nas nossas sociedades é o direito à vida) e se orgulha
de crescer à conta de esquemas destes e salários chineses?
Em
contrapartida o Sindicato dos Estivadores aceitou a criação de dois novos
níveis salariais. O salário base, subsídio de turno incluído, passa assim a ser
de 850 euros, com progressão automática, ao fim de quatro anos de contrato sem
termo, para os 1046,72 €. A partir daí, e aqui está um retrocesso (já conhecido
noutras empresas onde os mais novos estão “congelados”), para os dois níveis
salariais seguintes a progressão na carreira passa a fazer-se com base no
“mérito”, através da avaliação de desempenho (que, como sabem os Portugueses de
um “saber só de experiência feito”, é um instrumento não para promover o
mérito, mas para congelar ou rebaixar salários e premiar comportamentos mais
dóceis).
O
silêncio do Governo foi exemplar. Não criticou os salários em atraso, não se
opôs ao despedimento durante a greve (Quem é o juiz que decreta legal um
despedimento colectivo durante e por causa de uma greve?), e ficou a ver uma
empresa paralela que decreta a morte da empresa do lado, detida pelos mesmos
sócios. Ameaçou com requisição civil. Actuou quando o conflito ameaçava
estender-se a outros sectores, tornando-se um “mau exemplo” para um
sindicalismo fortemente burocratizado que está hoje a ser contestado (queda abrupta
da sindicalização, divisão de sindicatos tradicionais). E aqui merece o
paralelo com a descrição de Engels no final do século XIX. Os estivadores não
são já o “refugo do proletariado”, como eram descritos no século XIX, mas,
paradoxalmente, a sua porcelana. A razão, ao contrário do que se avança, não é
serem poucos – 320 em Lisboa – ou apelarem à unidade, ou serem “amigos” ou
“família”, mitos que ganham espaço num país em que se debate afectos em vez de
políticas, mas a forma como se organizam. É relativamente fácil de explicar. Os
estivadores reúnem-se em plenário para convocar e debater as greves e formas de
luta, o sindicato não aprova nada que não seja definido por todos em plenário.
Este não serve para plebiscitar a direcção mas para debater e votar de braço no
ar as decisões todas. Têm uma estratégia de combate que não tem qualquer
aliança partidária – travam lutas independentemente do Governo em funções. Têm
um sindicato internacional que faz greves de solidariedade – em tempos de
globalização e produção em cadeia, o seu impacto é enorme. E, fundamental, o
fundo de solidariedade. Como conseguiram os estivadores fixos impedir os quase
70 precários de trabalhar para a empresa paralela, furar a greve, se estes são
precários e dependem do trabalho para sobreviver? Usando o fundo de
solidariedade para os ajudar. E o fundo de greve para ajudar quem necessite na
greve. Não inventaram nada agora, inventaram-no os seus antepassados em Londres
e em Lisboa na viragem do século XIX para o XX – sindicalismo democrático,
fundos de greve, e sindicalismo independente dos governos.
(*) Historiadora, coordenadora do
Projecto Mundos do Trabalho Portuário, IHC-FCSH - Universidade Nova de Lisboa
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