As
primeiras reacções ao resultado do referendo britânico que ditou a saída do
Reino Unido da União Europeia viraram-se quase exclusivamente para razões de ordem
interna, as mais fáceis de evidenciar mas talvez não as únicas nem as mais
importantes. Como aqui já registámos, numa análise mais fina à forma como os britânicos
votaram, somo levados a acreditar que foram os mais pobres e os mais velhos, no
fundo os mais vulneráveis, aqueles que fizeram pender o resultado final do
referendo para o lado da “saída”. Invariavelmente verificou-se que do lado dos
eleitores mais pobres, foi maior a adesão ao “Brexit”. A Europa perdeu o apoio dos
mais fracos socialmente e estes reagiram de forma a não deixarem dúvidas.
No
seguinte artigo de opinião que transcrevemos do Público de hoje, o autor (*) é
de opinião que “muitas das razões que levaram os britânicos a votar out têm a sua origem nas desastrosas medidas
adotadas pela União Europeia”.
Entre
o caos nos mercados financeiros, a possível independência da Escócia e as
rebeliões que se avizinham nos dois principais partidos políticos britânicos, pouco
se tem falado das razões externas que levaram ao desenlace de quinta-feira. Em
particular, pouco se tem falado da culpa de Berlim e de Bruxelas em todo este
processo.
A
verdade é que muitas das razões que levaram os britânicos a votar out
têm a sua origem nas desastrosas medidas adotadas pela União Europeia, em larga
medida por pressão da Alemanha, para lidar com a crise financeira que tem vindo
a afetar a Europa (sobretudo do Sul) desde 2010. Apesar de os britânicos nunca
terem feito parte da zona euro, direta e indiretamente esta questão afetou
profundamente o debate sobre o referendo, tendo dado munições ao movimento
Leave e retirado argumentos aos que estavam a favor da manutenção do Reino
Unido na União Europeia em cinco áreas fundamentais.
Imigração. Nos últimos anos, centenas
de milhares de italianos, espanhóis, gregos, portugueses, irlandeses e
cipriotas imigraram para o Reino Unido à procura de emprego e de uma vida
melhor. Este movimento migratório deu uma visibilidade significativa aos fracassos
do projeto europeu e reforçou o argumento do descontrolo dos fluxos migratórios
para o Reino Unido. Para muitos britânicos, a União Europeia não só era incapaz
de resolver os problemas da zona euro como se recusava a inserir qualquer
mecanismo que prevenisse a chegada ilimitada de imigrantes europeus ao Reino
Unido.
Democracia. Os britânicos sempre foram
críticos da falta de legitimidade democrática da União Europeia. Nesse
contexto, casos como a demissão forçada de Silvio Berlusconi em Itália ou a
crise política grega e as consequentes chantagens feitas ao Governo grego do
Syriza, juntamente com as reuniões à porta fechada do Eurogrupo, só
"confirmaram" aquilo que os britânicos suspeitavam relativamente à
União Europeia: que se tratava de uma entidade não democrática em larga escala
ao serviço dos interesses da Alemanha.
Austeridade. Muitos dos problemas
identificados por aqueles que pretendiam a saída do Reino Unido da União
Europeia estavam ligados às políticas de austeridade dos governos de David Cameron,
que contribuíram para prolongar a recessão económica no país para lá do
necessário, cortaram subsídios fundamentais a milhões de pessoas (já de si no
limiar da pobreza) e reduziram os custos com os serviços públicos da educação
aos serviços locais. A austeridade brutal a que o Reino Unido tem sido sujeito
contribuiu para a efetiva descida do nível de vida daqueles que já estavam numa
situação frágil. A recuperação económica a que o país tem assistido nos últimos
anos atenuou alguns desses impactos, nomeadamente em termos de desemprego, mas
não a um nível necessário para colmatar a destruição provocada pelos cortes.
Indiretamente, a União Europeia ajudou à consolidação desta agenda de
austeridade, não só porque defendeu a mesma receita para os países da zona euro
como providenciou ao partido conservador britânico um dos seus principais
trunfos de campanha, tanto em 2010 como em 2015: a infindável crise grega. Esta
posição dificultou, de forma significativa, a tarefa daqueles que queriam
oferecer uma visão progressista do projeto europeu.
Conhecimento. Este foi, em boa medida, um
debate marcado por um certo anti-intelectualismo. O atual ministro da Justiça e
um dos líderes do movimento Leave, Michael Gove, chegou mesmo a dizer que o
público estava farto de peritos. Isto num contexto em que a esmagadora maioria
das instituições internacionais, economistas e líderes políticos fora e dentro
do país chamavam a atenção para os enormes riscos económicos e financeiros de
um "Brexit". Um dos argumentos mais frequentes em resposta aos avisos
constantes de uma potencial recessão económica era o de que estes tinham sido
os mesmos peritos que nos anos 1990 tinham defendido a entrada do Reino Unido
para a zona euro (e, como tal, não havia razão nenhuma para ouvir os seus argumentos).
Os sucessivos fracassos da zona euro ajudaram desta forma a reforçar o
argumento de que os peritos não são de confiança.
Seria
certamente injusto e analiticamente pouco sério reduzir a saída do Reino Unido
à crise da zona euro. Outras causas, internas, contribuíram igualmente para
isso (disputas internas do partido conservador, falta de rigor e seriedade por
parte dos media, ignorância generalizada
sobre o que é a União Europeia, nacionalismo). Mas, fundamentalmente, a União
Europeia, na forma como lidou e tem lidado com a crise do euro, passou uma
imagem negativa e sem visão de futuro, mais preocupada em punir os estados
"não cumpridores" do que em oferecer um projeto de futuro.
É
hoje consensual que David Cameron acabou por se revelar um primeiro-ministro
desastroso para o seu próprio país, sempre mais preocupado com a sua própria
sobrevivência política do que com o interesse nacional e muito menos europeu. O
seu posicionamento relativamente à União Europeia foi sempre problemático (tal
como o do líder da oposição, Jeremy Corbyn) e a sua campanha pela manutenção do
Reino Unido pouco convincente. Mas não menos convincente tem sido a gestão da
crise do euro por parte da União Europeia, alicerçada numa liderança alemã
economicamente dogmática e politicamente sem rumo. É também por culpa de
Bruxelas e de Berlim que o Reino Unido caminha para a saída da União Europeia.
(*) André Barrinha, Professor de Relações
Internacionais na Universidade de Canterbury Christ Church (Reino Unido) e
investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
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