Francisco
Louçã escreve hoje no Público sobre o caso Raríssimas num texto que
apresentamos a seguir.
Pelas
informações de fontes credíveis que nos vão chegando, é possível
apercebermo-nos de que não nos encontramos perante um caso único mas também não
devemos generalizar a todas as instituições o que aconteceu na Raríssimas.
De
qualquer maneira, a tomada de medidas como o aumento da fiscalização ou a
punição de casos isolados não levam à correcção do fundo do problema porque este
se encontra a outro nível. Situações escandalosas como a que agora veio a
público só têm lugar por vivermos num Estado “que não faz o que lhe compete e
deixa ao mercado o cuidado de quem precisa”. Aliás, poderíamos alargar a outras
áreas da sociedade esta crítica, como por exemplo, o que se passa na saúde ou
na educação.
O
caso da Raríssimas
é um exemplo de como o que começa mal acaba pior. Mas, no meio da pândega de
coluna social em que isto se tornou, convém distinguir no terceiro sector o que
responde por cuidados necessários e o que é “guito” e BMW. Não é fácil fazê-lo,
porque o caso se presta a todas as derivações: a indiferença exibida quanto às
dificuldades das contas, contrastada com a pressa da cobrança das prebendas, só
pode chocar; o pedido de indemnização demonstra uma presidente que não se
enxerga; e o carácter fútil de tudo isto revela um estilo de vida. Mas há mais
na devoção de muitas associações do que estas pitorescas deambulações.
No essencial, tem sido sublinhado que
o Estado fraco é isso mesmo, o que não faz o que lhe compete e deixa ao mercado
o cuidado de quem precisa. Sim, quando as fronteiras se tornam nebulosas entre
a obrigação pública, particularmente na saúde, e a esfera do negócio,
desvanecem-se as garantias para os utentes dos serviços. Veja os casos dos
cuidados continuados, ou do tratamento de toxicodependentes, em que o défice do
Estado permitiu um submundo de clínicas sucateiras, a par de raros serviços de
qualidade. Mas as excepções existem e esse é o ponto: há cooperativas de
profissionais ou outras formas de associação, na saúde ou na educação, que
respondem a graves carências sociais. Esses são os que sentirão o colapso da
direção da Rarissimas
com mais amargura, porque vai poluir quem se ocupa dos outros.
Nada deste espanejar de roupa suja, no
entanto, é novidade, leia a lista dos processos e das investigações em
curso sobre entidades deste tipo. Há portanto um problema essencial,
que é a permeabilidade de algumas destas instituições a um duplo facilitismo, o
da busca de efeito mediático para recolha de fundos (“o guito há-de vir”) e o
da familiaridade e proteção política. Note esta lista de deputados e
ex-governantes, já para nem lembrar a realeza espanhola, que querem ficar na selfie de uma instituição badalada, e
perguntemo-nos porque é que tantos ilustres queriam ser vices e directores e
consultores desta instituição. A resposta é triste: a exibição da caridade tem
sido uma segunda pele para muita ambição e carreira.
Por
isso, reduzir o assunto a fiscalização deficiente é ficar à espera da próxima.
É como o debate da corrupção: que confortável que é isentar as boas
consciências com a teoria da maçã podre. Se, afinal, os comportamentos
desviantes forem só a excepção malévola, o mergulho na devassidão moral que
tenta tantos mas atrai poucos, então uma correcção moralista e punitiva do caso
isolado permitiria elevar a sociedade. Só que, para restabelecer a confiança, é
preciso muito mais, a começar por enterrar a cultura de beautiful people que promove ou garante a longevidade
destas figuras pícaras.
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