Como
ainda esta semana afirmava Joana Mortágua em artigo de opinião no jornal i, “quando se viu sem assunto para criticar o Orçamento”, o PSD, revelando a “maior falta
de vergonha na cara” veio referir as “clientelas” para as quais a actual
solução governativa estaria a trabalhar. Acontece que, “estudantes,
trabalhadores, pensionistas e contribuintes são, por definição, aqueles para
quem se deve governar”, a esmagadora maioria da população, o povo.
Não sendo o desejável, nas
actuais circunstâncias, o Orçamento do Estado de 2018 é a solução menos má para
milhões de portugueses no sentido de trazer algumas melhorias para as suas
condições de vida. Na realidade, são estes todos que constituem as “clientelas”
com que, sem excepção, os governos se deveriam preocupar. Mas não é isso que
acontece, como muito bem sabemos, e basta recordarmos, para não irmos mais
longe, os elevadíssimos montantes que se gastam, por exemplo, para cobrir os
desmandos provocados pela banca ou as rendas pagas às energéticas. Estes, sim,
são “clientelas” que PSD e CDS muito bem conhecem…
É este o tema do excelente artigo
de opinião – todo ele atravessado por
uma fina ironia – que Francisco Louçã assina numa edição do Público desta
semana, cuja transcrição aqui deixamos.
Já
sabe do inquérito que aqui lhe estendo: de que clientela é vocelência? Porque a
sociedade à beira mar plantada está dividida entre as clientelas, portanto
malévolas e interesseiras, e os garbosos cavaleiros da virtude pátria. Todas as
vozes autorizadas se conjugam nesta certeza, a de que as clientelas tomaram
conta do fraco do primeiro-ministro e procedem a esventrar o orçamento,
comendo-lhe nacos sangrentos, tudo num apetite que compromete o futuro de
Portugal. É portanto de grande responsabilidade a escolha que vai fazer.
Pondere antes de assinar, os credores estão de olho em si.
A
sua primeira opção é a pior, fica já a saber. Se faz parte dos 210 mil que
beneficiam da alteração do mínimo de existência, dos 1,3 milhões salários e
pensões que pagarão menos IRS dado que a promessa dos novos escalões se
cumpriu, dos 2,5 milhões de reformados que vão ser aumentados ou dos 600 mil
funcionários públicos que têm as carreiras descongeladas, se é um dos 600 mil
trabalhadores do privado cujo salário mínimo vai voltar a subir, se faz parte
dos muitos milhões que usam o serviço de saúde e conseguirão médico de família
e esperam a recuperação da qualidade dos tratamentos, se tem crianças que vão
ter manuais escolares gratuitos e menos alunos por turma ou se recebe o abono
de família, só tenho uma notícia tenebrosa para si: malandra, está a devorar o
Orçamento, essa clientela é a vergonha do país.
A
sua segunda opção é a melhor, vá por mim, assinale que é tudo boa gente. Se tem
interesse na privatização dos aeroportos, na venda da TAP ou na concessão dos
transportes de Lisboa e Porto, espera pela véspera ou até pelo dia seguinte a
eleições, que um governo de gestão lhe vai fazer o despachozinho. Se tem uns
dinheirinhos de lado, vai haver um apagão e 10 mil milhões voarão para
offshores, se o seu banqueiro for dos tais é coisa garantida. Se tem amigos na
mafia russa, um Visto Gold resolve o assunto, seja bem-vindo. Se comprou uns
submarinos, já sabe que o Pai Natal está próximo. Se espera dividendos nas
energéticas, a renda é confortável e, credo, ninguém lhe mexe. Se teve
prejuízos no seu banco, talvez consiga que o Estado lhos pague ao longo dos
próximos 19 anos. Isso não é clientela, não senhora, é tudo business.
Assim
estamos, então. Invariavelmente, nesta luta sem tréguas pelas palavras, os que
dizem “clientela” atribuem-se representação do interesse geral e fazem vénia a
quem terçar pelos barões, pelo sr. Neeleman, pelo dono da EDP, por algum
aventureiro que quer Visto, são os “investidores”.
Noves fora, um conhecido
cientista político norte-americano, que ia pelo difícil nome de
Schattschneider, escreveu uma vez o mais óbvio: “Há milhões de conflitos
potenciais em cada sociedade moderna, mas só alguns se tornam significativos. A
definição das alternativas é o supremo instrumento do poder. Quem determina
sobre que é que é a política dirige o país”. Ou seja, quem determina as
palavras com que se fala ou os temas que se discutem é o vencedor. É mesmo
disso que se trata: se o discurso anti-“clientelar” conseguir marcar um cordão
sanitário em volta da vida da maioria da população, patologizando as suas
aspirações e fazendo com que os da fila da sopa dos pobres lamentem a desgraça
do milionário que tem de pagar o “imposto Mortágua”, então a direita
prevalecerá. Mas engana-se quem à direita pense que a batalha está ganha e
espero que tome nota: a radicalização do PSD e CDS e de outros como partidos
orgânicos dos interesses burgueses impõe-lhes um custo, se à esquerda se
perceber que esta discussão exige a centralidade de uma estratégia de
bipolarização. Vamos a isso, é tempo de atacar as clientelas sem dó nem
piedade. Se se pergunta como serão estes dois anos para construírem uma
esquerda que vença, eis a resposta. Bipolarização. Vida mais difícil para o
centro? Sim.
Sem comentários:
Enviar um comentário