terça-feira, 26 de dezembro de 2017

PÓS-DEMOCRACIA OU O CAMINHO MAIS CURTO PARA O FASCISMO


Não é novidade para ninguém que a democracia está a sofrer fortes ataques a nível global, tendendo a despir-se de qualquer significado prático na medida em que, embora existam instituições democráticas, elas “são meramente formais, uma vez que as decisões são tomadas por uma elite que detém o poder político e económico. As populações sentem esta situação e cada vez se alheiam mais de participar nos actos eleitorais pois o voto pouco ou nada contribui para a satisfação dos seus anseios ou meras necessidades.  
É à volta desta ideia que gira o texto seguinte, um interessante artigo de opinião transcrito do “Público” de hoje, onde o autor (*) utiliza vários exemplos para concluir “que o funcionamento das instituições democráticas é uma mera formalidade” nos tempos que correm…
O conceito de pós-democracia, tal como o vamos desenvolver adiante, parece ter partido do sociólogo Colin Crouch, (n. 1944), professor em Inglaterra na Universidade de Warwick, no seu livro Coping with Post-Democracy, publicado em 2000.
Trata-se da constatação de que, com a globalização, muitas das decisões tomadas, na política como na economia, são-no a nível global, nos foros internacionais, de que a maior parte das pessoas estão arredadas. Daí uma clara falta de interesse pela política e consequente abandono da participação nos actos eleitorais, principalmente nos países desenvolvidos, onde raramente as abstenções são abaixo dos 50%.
Aqui, apontar-se-ia de imediato a União Europeia como uma das causas para o alheamento referido. Mas o mesmo acontece noutras regiões como nos Estados Unidos e Japão, onde as instituições políticas são de outro tipo. Porém, o que Colin Crouch esclareceu foi que nessas sociedades as instituições democráticas existem, mas são meramente formais, uma vez que as decisões são tomadas por uma elite que detém o poder político e económico. E isto é evidente desde que o neoliberalismo se tornou teoria e prática depois da implosão da União Soviética e dos outros países socialistas.
A financeirização da vida política e económica, onde tudo é considerado mercadoria, desde os humanos à arte, é aceite por todos os “especialistas” destas questões, que aparecem com os seus comentários e alertas sempre a invocar o imperativo do lucro das grandes empresas. Dois casos recentes em Portugal são elucidativos. Quando o governo de Passos Coelho ficou na posse de 85 quadros de Miró, que pertenciam ao BPN, logo se disponibilizou para os leiloar a um preço avaliado em 36 milhões de euros, seguramente para agradar à troika e às instituições que tinham o governo sob tutela. Muito se devem ter impressionado alguns elementos dessas instituições pelo menosprezo demonstrado por uma colecção de arte ímpar, a troco da redução de uma parcela ínfima da dívida portuguesa.
Outro caso da actualidade é o da Autoeuropa, cujo contexto conheço relativamente bem, não só porque trabalhei na indústria automóvel durante 18 anos, repartidos pela General Motors e a Renault Portuguesa, antes de ir para Bruxelas, como tenho uma filha que pertenceu aos quadros da empresa durante dez anos, dois dos quais na sede da VW, em Wolfsburg, que tive ocasião de visitar. A facilidade com que se acusam os dois partidos de esquerda, que apoiam o Governo, de destabilização é só uma prova de ignorância sobre o que é a vida social e laboral numa grande empresa. Como dizia alguém recentemente, todos os que têm menos de 50 anos são uns ignorantes. Não queria ir tão longe porque é preciso notar que mesmo muitos que não sofreram da desmemorização em curso, no que toca à história política e económica dos últimos 200 anos, aproveitam-se para propalar e aumentar, de má-fé, essa ignorância.
Mas voltando a Colin Crouch e às suas conclusões de que vivemos numa era de pós-democracia, em que as elites políticas, económicas e financeiras estão combinadas para, sob a palavra de ordem de competitividade das empresas e dos países, tomarem as decisões que só a elas beneficiam, deixando aqueles que são os verdadeiros produtores incapazes de reagir, verifica-se que, quando há uma reacção, como aquela que aconteceu dos trabalhadores da Autoeuropa, aparecem logo as ameaças e os tais “especialistas” a propor o acatamento das decisões da direcção da empresa. Neste caso, injustas e atentatórias dos direitos mais básicos de quem trabalha. Esquecendo-se dos milhares de conflitos como este que aconteceram ao longo de muitas décadas na indústria automóvel, para já não falar da raridade de situações como esta na maior parte das fábricas da Volkswagen, onde as remunerações, as regalias e as condições de trabalho são muito superiores às que existem em Palmela.
Um outro “esquecimento” dos direitos humanos, que estão sempre a ser exigidos aos países que não pertencem ao bloco ocidental, diz respeito ao tratamento da crise dos refugiados, resultante das guerras que este mesmo bloco ocidental desencadeou em regiões onde outrora foi rei e senhor e pretende continuar a mandar. Uma verdadeira “trapalhada”, mas onde estão a morrer milhares de seres humanos. Que se assemelha ao tratamento da crise financeira e social iniciada há dez anos em que os gregos (e muitos portugueses) foram deixados a pão e água, em contraste com os biliões utilizados para salvar os interesses financeiros dos accionistas dos bancos.
Outro exemplo recente é o da “caça ao negro” nos Estados Unidos, principalmente durante o segundo mandato de Obama, poupado a um expectável atentado dos racistas e defensores da supremacia branca, mas compensado com o tiro ao alvo indiscriminado da polícia, não só nos Estados do sul, sobre qualquer cidadão negro considerado “suspeito”, sendo que o direito a transporte de uma arma, concedido pela Constituição a todos os americanos, não inclui estes cidadãos.
Por fim, enquanto pesquisava sobre o tema da pós-democracia, encontrei onde menos esperava, no Brasil, um artigo muito bem elaborado e uma entrevista do juiz de direito do Rio de Janeiro Rubens Casara, incidindo numa perspectiva diferente de Crouch, a de um jurista. Nomeadamente na revista Justificando, Casara complementa a definição daquele, de que o funcionamento das instituições democráticas é uma mera formalidade, afirmando que o Estado, do “ponto de vista político apresenta-se como um mero instrumento de manutenção da ordem, controle das populações indesejadas e manutenção ou ampliação das condições de acumulação de capital e geração de lucros”. Num contexto muito diferente da Europa, Estados Unidos ou Japão, a situação social no Brasil, de milhões e milhões de sub-cidadãos a viverem nas favelas das grandes cidades, implica a manutenção de uma força da ordem militarizada para impedir qualquer acto de rebelião contra essa injustiça flagrante que resulta directamente da escravidão. (Que, como Casara refere, conviveu com o Estado “liberal”). É o que se passou também nos sistemas coloniais como o português, bem demonstrado nos programas que Fernando Rosas fez para a RTP2, no apartheid da África do Sul ou na ocupação de Israel na Palestina, no pouco que resta de território deixado aos palestinianos, só para dar três exemplos.
Rubens Casara acrescenta que no Brasil hoje existe um Estado pós-democrático “sem qualquer compromisso com a concretização dos direitos fundamentais, com o resultado das eleições, com os limites ao exercício do poder ou com a participação popular na tomada de decisões”. Referindo-se, embora não o mencionando directamente, ao afastamento de Dilma Rousseff da Presidência, à perseguição e prisão para interrogatório de Lula da Silva, às escutas telefónicas e ao condicionamento da liberdade de expressão e de manifestação de todos aqueles que se opõem ao poder económico, identificado sem pudor com o poder político, termina dizendo que se trata de uma “justiça moldada ao gosto da opinião pública”, que como se sabe é controlada pelo poder económico. Depois, numa entrevista à revista CULT, Casara afirma que a democracia se tornou um obstáculo ao projecto neoliberal. Os constrangimentos democráticos precisam de ser “descartados” para que o capitalismo, concretizado nos interesses das grandes corporações, prossiga o seu avanço e dominação global. A isto se chama pós-democracia.
Como dizia um colega mais velho, quando entrei para a General Motors, em Dezembro de 1970, acabado de chegar de uma comissão militar em Moçambique, “pergunta a minha curiosidade”: e a que distância estamos do fascismo?
(*) José Pereira da Costa, Investigador em Relações Internacionais, Público

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