Com
o fim das ”lutas de libertação anticlonial” que tiveram lugar no século XX e
consequente criação de muitos novos países, criou-se a ideia de que o colonialismo
tinha terminado ou estava moribundo. Nada mais errado pois o domínio que as
antigas potências coloniais “continuaram a deter sobre as antigas colónias” não
só não foi eliminado como assumiu novas formas igualmente pérfidas mas com
outras roupagens. O colonialismo como forma de dominação continua pujante nos
nossos dias como afirma o Prof. Boaventura Sousa Santos num artigo de opinião
que assina no Público desta sexta-feira e de onde retirámos o seguinte excerto.
O
termo alemão Zeitgeist é hoje usado em diferentes línguas
para designar o clima cultural, intelectual e moral de uma dada época,
literalmente, o espírito do tempo. Na idade moderna, dada a persistência da
ideia do progresso, uma das maiores dificuldades em captar o espírito de uma
dada época reside em identificar as continuidades com épocas anteriores, quase
sempre disfarçadas de descontinuidades, inovações, rupturas. O que permanece de
períodos anteriores é sempre metamorfoseado em algo que simultaneamente o
denuncia e dissimula e, por isso, permanece sempre como algo diferente do que
foi sem deixar de ser o mesmo. As categorias que usamos para caracterizar uma
dada época são demasiado toscas para captar esta complexidade, porque elas
próprias são parte do mesmo espírito do tempo que supostamente devem
caracterizar a partir de fora. Correm sempre o risco de serem anacrónicas, pelo
peso da inércia, ou utópicas, pela leveza da antecipação.
Tenho
defendido que vivemos em sociedades capitalistas, coloniais e patriarcais, por
referência aos três principais modos de dominação da era moderna: capitalismo,
colonialismo e patriarcado ou, mais precisamente, hetero-patriarcado. Nenhuma
destas categorias é tão controversa quanto a de colonialismo. Fomos todos tão
socializados na ideia de que as lutas de libertação anticolonial do século XX
puseram fim ao colonialismo que é quase uma heresia pensar que afinal o
colonialismo não acabou, apenas mudou de forma ou de roupagem, e que a nossa
dificuldade é a de a nomear adequadamente. É certo que os analistas e os
políticos mais avisados tiveram a percepção aguda desta complexidade, mas as
suas vozes não foram suficientemente fortes para pôr em causa a ideia
convencional de que o colonialismo propriamente dito acabara, com excepção de
alguns poucos casos (o Sahara Ocidental, a colónia hispano-marroquina que
continua subjugando o povo saharaui e a ocupação da Palestina por Israel).
Entre essas vozes, saliento Pablo Gonzalez Casanova e o seu conceito de
colonialismo interno para caracterizar a permanência de estruturas de poder
colonial nas sociedades que emergiram no século XIX das lutas de independência
nas Américas. E o líder africano, Kwame Nkrumah, primeiro Presidente da
República do Gana, com o seu conceito de neocolonialismo para caracterizar o
domínio que as antigas potências coloniais continuavam a deter sobre as suas
antigas colónias.
O
que terminou com os processos de independência do século XX foi uma forma
específica de colonialismo, e não o colonialismo como modo de dominação. A
forma que terminou foi o que se pode designar por colonialismo histórico
caracterizado pela ocupação territorial estrangeira. Mas o modo de dominação
colonial continuou sob outras formas. O colonialismo como modo de dominação
assente na degradação ontológica das populações dominadas por razões
etno-raciais está hoje tão vigente e violento como no passado. Às populações e
aos corpos racializados não é reconhecida a mesma dignidade humana que é
atribuída aos que os dominam. São populações e corpos que, pese embora todas as
declarações universais dos direitos humanos, são existencialmente considerados
sub-humanos, seres inferiores na escala do ser, facilmente descartáveis. Foram
concebidos como parte da paisagem das terras "descobertas" pelos
conquistadores, terras que, apesar de habitadas por populações indígenas, foram
consideradas como terras de ninguém. Foram também considerados como objectos de
propriedade individual, de que é prova histórica a escravatura. E continuam
hoje a ser populações e corpos vítimas do racismo, da xenofobia, da expulsão
das suas terras para abrir caminho aos megaprojectos mineiros e
agro-industriais e à especulação imobiliária, da violência policial e das
milícias paramilitares, do tráfico de pessoas e de órgãos, do trabalho escravo
designado eufemisticamente como "trabalho análogo ao trabalho
escravo", da conversão das suas comunidades de rios cristalinos e
florestas idílicas em infernos tóxicos de degradação ambiental. Vivem em zonas de
sacrifício, a cada momento em risco de se transformarem em zonas de não-ser.
As
novas formas de colonialismo são mais insidiosas porque ocorrem no âmago de
relações sociais dominadas pelas ideologias do anti-racismo, dos direitos
humanos universais, da igualdade de todos perante a lei. O colonialismo
insidioso é gasoso e evanescente, tão invasivo quanto evasivo, em suma,
ardiloso. Mas nem por isso engana ou minora o sofrimento de quem é dele vítima
na sua vida quotidiana.
Floresce em apartheids sociais não institucionais mesmo que
sistemáticos. Ocorre nas ruas e nas casas, nas prisões e nas universidades, nos
supermercados e nas esquadras de polícia. Disfarça-se facilmente de outras
formas de dominação tais como diferenças de classe e de sexo ou sexualidade.
Verdadeiramente só é captável em close-ups, instantâneos do dia-a-dia. Em alguns
deles, o colonialismo insidioso surge como saudade do colonialismo, como se
fosse uma espécie em extinção que tem de ser protegida e multiplicada.
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