Num
processo completamente opaco, Lula da Silva foi inevitavelmente preso porque
todos os poderes fácticos do Brasil não permitiam que o ex-presidente
continuasse em liberdade dado que a sua popularidade atingiu patamares que o
guindavam para o lugar mais alto da hierarquia do poder no país irmão de Portugal.
Se não fosse por uma razão seria por outra ainda que tivesse de ser inventada. Parece
óbvia a pressa de enclausurar Lula tendo em atenção que se trata de um evidente
atropelo à Constituição brasileira que “determina que ninguém será considerado
culpado até ao trânsito em julgado de sentença condenatória”.
Estamos,
pois, perante uma situação que vai continuar a fazer correr muita tinta por
todo o mundo democrático pois, no fundo, estamos perante mais uma clara
ilegalidade que visa violar a democracia brasileira.
Solidários,
com todos aqueles que, do outro lado da Atlântico, lutam contra a violação da
lei, aqui fica mais este artigo de opinião (*) que transcrevemos do “Público”
de hoje.
O Supremo Tribunal Federal recusou o pedido de habeas
corpus de Luís Inácio Lula da Silva, efetivando o mandado de prisão. Lula
foi levado à prisão, em braços, pelo povo. O juiz que assinou o mandado, em
minutos, apanhou prontamente um avião para Lisboa, escapando da praça pública.
Sobre o processo em si, os factos que consumam a decisão são muito pouco
transparentes, baseando-se numa suspeita que remonta à década de 1980, altura em
que a carreira de Lula começava a emergir o suficiente para constituir um
perigo para o status quo das instituições, conservadoras e herdeiras de
um modelo ideológico que idealizava e idealiza o Brasil cristalizado entre a
Casa Grande e a Senzala. Por isso, a prisão de Lula deve ser inscrita nesse
contexto maior, que se materializa com o impeachment de Dilma Rousseff,
justificado por irregularidades que não ocorreram, mas que serviram para
estancar o processo conhecido por "lava-jato". A concertação
política é conhecida, e está bem patente nas palavras, tornadas públicas, de
Romero Jucá: “Conversei ontem com alguns ministros do Supremo. Os caras dizem
'ó, só tem condições de [inaudível] sem ela [Dilma]. Enquanto ela estiver ali,
a imprensa, os caras querem tirar ela, essa porra não vai parar nunca'.
Entendeu? Então... Estou conversando com os generais, comandantes militares.
Está tudo tranquilo, os caras dizem que vão garantir.”
Os
contornos sinistros do golpe são evidentes. A prisão de Lula, por si só,
configura uma encenação política oportunamente orquestrada numa altura em que o
ex-Presidente aparecia como grande favorito nas eleições presidenciais
brasileiras, com uma intenção de voto em torno dos 40%, face aos 8% de Jair
Bolsonaro, o presumível candidato da direita, um apoiante da ditadura militar,
ultra-conservador, homofóbico, anti-liberdade religiosa, defensor da
despenalização da violação e da penalização severa do aborto, da discriminação
racial e da diferença salarial entre homens e mulheres. Ora, a fim de garantir
a eleição de tal personagem, era premente afastar o mais sério candidato, ao
caso Lula da Silva.
Mas
o que representa Lula da Silva? Por que motivo Lula da Silva assusta tanto a
direita brasileira ao ponto de se falar num processo que, à primeira vista, a
partir de um olhar impreparado, representa uma teoria da conspiração? Como tem
sido partilhado nas redes sociais no Brasil, Lula é, antes de mais, "uma
ideia". Ele representa um país de possibilidades para os historicamente
desfavorecidos, marginalizados e segregados, desde a escravatura ao
pós-abolição, onde a governança brasileira, a partir de paradigmas ideológicos
desenvolvimentistas, foi levando a cabo um branqueamento social, através do estimulo
massivo à imigração europeia, mas não apenas. Os ex-escravos tornaram-se
cidadãos livres, mas sem acesso à educação, à cultura, ao emprego, à habitação,
sendo empurrados para fora das malhas urbanas. A obra de Maria Nilza da Silva, Nem para Todos e a Cidade, é um retrato disso mesmo.
Com
a eleição de Lula, vieram medidas sociais profundas, restauradoras das
injustiças historicamente perpetradas contra os mais desfavorecidos. Medidas
como a Bolsa Família, que tirou milhares de famílias da miséria e garantindo-lhes
acesso à saúde e educação, a ProUni, que forneceu bolsas de estudos, "luz
para todos", "fome zero", as quotas raciais nas universidades, e
a criação de 18 novas universidades e 422 escolas técnicas, ou a lei que estabeleceu
o ensino da cultura afro-brasileira e ameríndia nas escolas, foram algumas das
medidas da presidência de Lula que possibilitaram a mobilidade social, tornando
o Brasil mais justo e equilibrado, com negros nas universidades e com acesso a
empregos historicamente demarcados racialmente.
É,
por tudo isto, que ele é odiado pela direita, a classe burguesa e
pseudo-aristocrática dos privilégios herdados, filha dos coronéis das fazendas,
dos salões das casas grandes, que não toleram a presença de negros nas
universidades, nos shoppings, nos aeroportos, que se enfurecem com o facto da
doméstica ir de férias e ter "carteira assinada" com direitos
elementares. É uma classe saudosista da miséria dos pobres, do enorme fosso
social, da exploração dos mais desfavorecidos, que não tolera uma sociedade que
não dividida, eternamente, entre ricos e pobres, entre a Casa Grande e a
Senzala.
(*) João Ferreira Dias,
Investigador
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