A
prisão do ex-Presidente do Brasil e todo o processo que conduziu ao
encarceramento de Lula da Silva tem levado a uma série de tomadas de posição
através da comunicação social que denotam, como não podia deixar de ser, a ligação
que os portugueses mantêm à realidade brasileira mas também à luta pela
democracia que está a ser levada a cabo no maior país de língua portuguesa.
Seguramente
que o artigo de opinião seguinte, assinado no “Público” de hoje pelo Prof.
Boaventura Sousa Santos, sociólogo de renome internacional e Direcctor do CES
(*), constitui uma das posições mais lúcidas que se têm lido na comunicação social
portuguesa tendo como pano de fundo a prisão de Lula da Silva associada à clara
degradação da democracia no Brasil.
O processo Lula da Silva põe a nu de
forma gritante que algo está podre no sistema judicial brasileiro, evidenciando
procedimentos e práticas incompatíveis com princípios e garantias fundamentais
de um Estado de direito democrático, os quais devem ser denunciados e
democraticamente combatidos.
Totalitarismo e selectividade da acção
judicial. O princípio da
independência dos tribunais constitui um dos princípios básicos do
constitucionalismo moderno como garantia do direito dos cidadãos a uma justiça
livre de pressões e de interferências, quer do poder político quer de poderes
fácticos, nacionais ou internacionais. O reforço das condições de efectivação
daqueles princípios dá-se através de modelos de governação do judiciário com
ampla autonomia administrativa e financeira. Mas, numa sociedade democrática,
esse reforço não pode resvalar para um poder selectivo e totalitário, sem
fiscalização e sem qualquer sistema de contrapesos. O processo Lula da Silva
evidencia um judiciário em que tal resvalamento está em curso. Eis dois
exemplos. É clara a disjunção entre o activismo judiciário contra Lula da Silva
– célere, eficaz e implacável na acção (Sérgio Moro decretou a prisão de Lula
escassos minutos após ser notificado da decisão de indeferimento do habeas
corpus, do qual ainda era possível recorrer, e desde a denúncia à execução
da pena decorreram menos de dois anos) – e a lentidão da acção judicial contra
Michel Temer e outros políticos da direita brasileira. E não pode colher o
argumento de que essa inacção foi bloqueada por manobras do poder político
porque não se conhece igual activismo do judiciário na denúncia dessas manobras
e em procurar ultrapassá-las. O segundo é a restrição totalitária de direitos e
liberdades constitucionalmente consagradas. Num Estado de direito democrático,
os tribunais têm de ser espaços de aprofundamento de direitos. Ora, o que se
assiste no Brasil é precisamente o contrário. A Constituição brasileira
determina que ninguém será considerado culpado até ao trânsito em julgado de
sentença condenatória, isto é, até que se esgotem todas as possibilidades de
recurso. A Constituição Portuguesa tem uma norma semelhante, e não se imagina
que o Tribunal Constitucional português viesse determinar que uma pessoa fosse
presa com o seu processo em recurso no Supremo Tribunal de Justiça. Ora, foi
isso mesmo o que a maioria dos juízes do Supremo Tribunal Federal brasileiro
fez: restringiu direitos e liberdades constitucionais ao determinar que, mesmo
não tendo o processo transitado em julgado, Lula da Silva poderia começar a
cumprir pena. Qual a legitimidade social e política do poder judicial para
restringir direitos e liberdades fundamentais constitucionalmente consagrados?
Como pode um cidadão ou uma sociedade ficar à mercê de um poder que diz ter
razões legais que a lei desconhece? Que confiança pode merecer um sistema
judicial que cede a pressões militares que ameaçam com um golpe se a decisão
não for a que preferem, ou a pressões estrangeiras, como as que estão
documentadas de interferência do Departamento de Justiça e do FBI dos EUA no
sentido de agilizar a condenação e executar a prisão de Lula?
Falta de garantias do processo criminal. O debate mediático em torno da prisão
de Lula enfatiza o facto de o processo ter sido apreciado e julgado por um
tribunal de segunda instância que não só confirmou a sua condenação como ainda
agravou a pena. Este agravamento obrigaria a uma justificação adicional de
culpabilidade. Infelizmente, a hegemonia ideológica de direita que domina o
espaço mediático não permite um debate juridicamente sério a este respeito. Se
tal fosse possível, compreender-se-ia quão importante é questionar as provas
materiais, as provas directas dos factos em que assentou a acusação e a
condenação. Ora essas provas não existem no processo. A acusação e a condenação
a 12 anos de prisão de Lula da Silva funda-se, sobretudo, em informações
obtidas através de acordos de delação premiada e em presunções. Acresce que as
condições de recolha e de validação da prova dificilmente são escrutináveis,
dado que quem preside à investigação e valida as provas é quem julga em
primeira instância, ao contrário do que, por exemplo, acontece em Portugal,
onde o juiz que intervém na fase de investigação não pode julgar o caso,
permitindo, assim, um verdadeiro escrutínio da prova. O domínio do processo, na
fase de investigação e de julgamento, por um juiz confere a este um poder
susceptível de manipulação e de instrumentalização política. Compreende-se a
magnitude do perigo para a sociedade e para o regime político no caso de este
poder não se autocontrolar.
Instrumentalização da luta contra a
corrupção. O debate sobre o
Caso Lula protagonizado por um sector do judiciário polariza o combate contra a
corrupção, colocando de um lado os actores judiciais do processo Lava Jato,
a eles colando o combate intransigente contra a corrupção, e do outro todos aqueles
que questionam métodos de investigação, atropelos aos direitos e garantias
constitucionais, deficiências da prova, atitudes totalitárias do judiciário,
selectividade e politização da justiça. Essa polarização é instrumental e visa
ocultar justamente atropelos vários do judiciário, quer quando age quer quando
se recusa a agir. O roteiro mediático da demonização do PT é tão obsessivo
quanto grotesco. Consiste na seguinte equação:
corrupção-igual-a-Lula-igual-a-PT. Quando se sabe que a corrupção é endémica,
atinge todo o Congresso e supostamente o actual Presidente da República. O Estado
de São Paulo de 7 de Abril é paradigmático a este respeito. Conclui o
roteiro com a seguinte diatribe: "a exemplo do que aconteceu com Al
Capone, o célebre gângster americano que foi preso não em razão de suas
inúmeras actividades criminosas, mas sim por sonegação de impostos, o caso do
triplex, que rendeu a ordem de prisão contra Lula, está muito longe de resumir
o papel do ex-presidente no petrolão". Esta narrativa omite o mais
decisivo: no caso de Al Capone, os tribunais provaram de facto a sonegação dos
impostos, enquanto, no caso de Lula da Silva, os tribunais não provaram a
aquisição do apartamento. Por incrível que pareça, da leitura das sentenças tem
de concluir-se que a suposta prova é mera presunção e convicção dos
magistrados. A campanha anti-petismo faz lembrar a campanha anti-semitismo dos
tempos do nazismo. Em ambos os casos, a prova para condenar consiste na
evidente desnecessidade de provar.
Os democratas e os muitos magistrados
brasileiros que com probidade cívica e profissional servem o sistema judicial
sem se servirem dele têm uma tarefa exigente pela frente. Como sair com
dignidade deste pântano de atropelos com fachada legal? Que reforma do sistema
judicial se impõe? Como organizar os magistrados dispostos a erguer trincheiras
democráticas contra o alastramento viscoso de um fascismo jurídico-político de
tipo novo? Como reformar o ensino do direito de modo a que perversidades
jurídicas não se transformem, pela recorrência, em normalidades jurídicas? Como
devem as magistraturas autodisciplinar-se internamente para que os coveiros da
democracia deixem de ter emprego no sistema judicial? A tarefa é exigente, mas
contará com a solidariedade activa de todos aqueles que em todo o mundo têm os
olhos postos no Brasil e se sentem envolvidos na mesma luta pela credibilidade
do sistema judicial enquanto factor de democratização das sociedades.
(*) CES – Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
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