A
lei que criou o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em 1979 teve desde logo uma
cerrada oposição de PSD e CDS que votaram contra, mantendo ao longo destes últimos
39 anos a mesma atitude, não sendo de admirar que, uma vez no Governo, tudo tenham
feito para a descaracterizar, em benefício dos negócios do sector privado.
“Embora
o SNS tenha conseguido, até hoje, resistir à descaracterização”, a
verdade é que tem sofrido um ataque cerrado sob a forma de políticas
neoliberais levadas a cabo não só pela direita como pelo PS, quando assumem
funções governativas.
O
SNS é justamente considerado “como uma das mais importantes conquistas do
regime democrático e um importante pilar da sua legitimação” como começa por
afirmar João Arriscado Nunes (*) num artigo de opinião que assina no “Público”
de hoje e que reproduzimos a seguir.
Em véspera do Dia Mundial da Saúde, é
justo e oportuno saudar o Serviço Nacional de Saúde, que em breve completará 39
anos, como uma das mais importantes conquistas do regime democrático e um
importante pilar da sua legitimação. O reconhecimento dessa importância
coexiste, porém, com a crescente visibilidade de problemas que hoje afetam a
capacidade de realização da sua missão de proteção e promoção da saúde de toda
a população: longas listas de espera para consultas, exames ou cirurgias;
carência de médicos de família e de especialistas, comprometendo a
universalidade de cobertura dos cuidados; problemas de carreiras, remuneração e
estabilização da condição laboral dos profissionais; procura de urgências por
ausência de alternativa de atendimento atempado e acessível em permanência;
subfinanciamento crónico... Os sinais de crise não demonstram a inviabilidade
presente ou futura do SNS, mas são sintomas de uma degradação que radica na
tensão que tem marcado as quase quatro décadas da sua existência, construção e
consolidação.
Importa lembrar que a aprovação da lei
que criou o SNS em 1979, com base numa proposta da autoria de António Arnaut,
teve oposição, na votação na generalidade, do PSD e CDS. A posterior aprovação,
em 1990, da Lei de Bases da Saúde, que contemplou posições vencidas em 1979,
consagrou um parcial esvaziamento da capacidade do SNS de cumprir a sua missão
enquanto serviço garantindo a toda a população cobertura universal e gratuita –
ou seja, sem custos acrescidos para os utentes para além da sua contribuição
através de impostos. A relação de complementaridade do SNS e do setor privado
foi convertida em concorrência promovida e garantida pelo próprio Estado,
privilegiando a função de financiamento sobre a de prestação de cuidados de
saúde. Os cidadãos viram aumentado o seu esforço de participação direta no
financiamento de cuidados de saúde (27% em 2017, quando a média da OCDE é de
19%), a partir da criação de taxas moderadoras, que rapidamente tenderam a
transformar-se em formas de cofinanciamento. Foi promovida a privatização de
hospitais e/ou da sua gestão, sob varias formas, desde os hospitais-empresa às
parcerias público-privadas, com substanciais benefícios para o setor privado. A
privatização não ocorreu apenas através da extensão do complexo
médico-empresarial – incluindo grupos empresarias prestadores de cuidados e a
indústria farmacêutica e de equipamentos - ou da contratação de serviços (que
na versão original do SNS teriam um caráter complementar), mas da sua ocupação
de espaços da administração e gestão do próprio SNS. Tendo como pano de fundo a
dinâmica neoliberal, recentemente reafirmada pelas políticas de austeridade, o
SNS viu o seu financiamento, enquanto percentagem do PIB, reduzido de 7,2 para
5,8, bem abaixo da média da EU, próxima dos 8%.
Embora o SNS tenha conseguido, até hoje,
resistir à descaracterização, as suas quase quatro décadas de existência têm
sido marcadas pelo confronto, mais ou menos intenso conforme os momentos, de
duas conceções do que deve ser a função do Estado na proteção e promoção da
saúde. Esta situação tem merecido diagnósticos rigorosos e propostas políticas
que procuram restituir ao SNS as condições e cumprimento da sua missão como
essencial à realização dos direitos humanos e dos direitos de cidadania. Como
propuseram recentemente António Arnaut e João Semedo, a condição para que tal
aconteça passa por uma reforma de Lei de Bases da Saúde que permita adequá-la
aos princípios que nortearam a criação do SNS, protegendo-o de uma promiscuidade
permitida ou promovida em nome da concorrência e do direito de escolha dos
utentes. A proteção e consolidação do SNS não significa que os utentes não
possam fazer escolhas, mas procura garantir o acesso, pelo serviço público, a
uma cobertura universal e de qualidade de cuidados de saúde, independente da
capacidade financeira, da condição perante o trabalho ou da região ou local de
residência de quem a ele recorre. A relação com o setor privado será,
nestas condições, de complementaridade, respondendo quando necessário às
carências do SNS, e sujeita a formas específicas de regulação.
A resposta à crise exige, pois, não um
SNS “seletivamente inteligente” – por outras palavras, um SNS “emagrecido” para
os pobres -, como foi já proposto, mas a definição de um padrão de qualidade e
exigência universal do serviço público de saúde estabelecido a partir do
serviço prestado aos setores mais pobres e vulneráveis da população.
Responder hoje à crise do SNS significa
atuar sobre os problemas de organização, de gestão e de insuficiência de
recursos humanos que o afetam, assim como cumprir a exigência de participação
democrática dos utentes e das suas organizações nas estruturas do SNS. Mas
significa também a exigência de um financiamento adequado e a garantia de que o
SNS beneficiará das condições necessárias ao cumprimento da sua missão de
proteção e promoção da saúde, em articulação com iniciativas mais amplas e
transversais de promoção da saúde em todas as políticas.
Defender e afirmar a saúde como direito
e a sua proteção como responsabilidade coletiva passa assim por garantir as
condições financeiras, de organização, de gestão e de dotação adequada de
recursos humanos do SNS, em articulação com políticas públicas dirigidas às
dinâmicas sociais e ambientais que determinam a saúde e a doença, contra a
mercadorização da saúde e a ênfase na responsabilização individual que ignora
ou minimiza essas determinações.
(*) Investigador e
professor universitário
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