Os portugueses têm mostrado uma enorme complacência perante os desmandos dos últimos governos. Assim sucedeu com Sócrates que, depois de tantas trampolinices que levou a cabo no primeiro mandato, com maioria absoluta, ainda recebeu o benefício da dúvida para uma segunda oportunidade que já não foi capaz de levar até ao fim.
Quando pensávamos que com Sócrates tínhamos batido no fundo da incompetência / trapaça governativa (para usarmos apenas uma leve qualificação), eis que o fundo abriu um buraco com a actual coligação de direita. A partir de agora, já nada nos pode espantar e o fundo até pode ter desaparecido…
Estamos entregues a um bando de garotos e lunáticos que vivem fora da realidade e que poderão estar a conduzir o país para um caos social de consequências imprevisíveis. O último exemplo do desnorte em que esta gente vive teve lugar esta semana com o corte, “com desvelo pornográfico” “na rede dos mínimos sociais” como o subsídio de desemprego, rendimento social de inserção e complemento social para idosos como chama a atenção o sociólogo Pedro Adão e Silva no Expresso de ontem.
A MISÉRIA DA ÉTICA SOCIAL
Entre um sem número de patacoadas anunciadas pela coligação que nos governa, destaca-se a promessa de que as medidas do executivo seriam marcadas por uma “ética social na austeridade”. Fazia todo o sentido. Níveis de austeridade como os que enfrentamos ameaçam a democracia e a existência de algum esforço – mesmo que ténue – para compensar os que mais sofrem com o processo de ajustamento. Não só porque é a única forma de garantir que o regime resiste, mas também porque só assim é politicamente viável cumprir o memorando com a troika.
Por razões que ainda não compreendemos plenamente, Passos Coelho resolveu regressar do verão anunciando uma medida – as alterações da TSU – que configurava um inusitado movimento redistributivo, penalizando os mais fracos e reforçando os mais fortes. Depois, a história é conhecida: a proposta caiu às mãos da rua, o CDS aproveitou para cavalgar o descontentamento e a crise política instalou-se no Conselho de Ministros. Pelo caminho, a popularidade do Governo colapsou.
Com que para provar que o Governo não aprende, nem sequer com os próprios erros, esta semana não ocorreu nada melhor ao executivo do que anunciar novos cortes na rede de mínimos sociais. Do subsídio de desemprego ao complemento solidário para idosos, passando pelo rendimento social de inserção nada escapou ao que pode ser descrito como um ataque tentado com “napalm social”. Não sabendo onde cortar, o Governo optou por poupar, com desvelo pornográfico, na proteção dos mais desfavorecidos: pobres, idosos e desempregados.
Esta opção não é politicamente neutra: enquanto se degrada a rede de mínimos sociais, empurrando milhares de cidadãos para abaixo do limiar da pobreza, vamo-nos aproximando de um passado onde a fome e a indigência social eram o último recurso dos desempregados. Quando temos um mercado de trabalho profundamente deprimido, é caso para dizer: bem regressados à barbárie social.
Na ausência de facto de um primeiro-ministro, Vitor Gaspar, fazendo prova de vida da sua qualidade de regente, aproveitou para explicar, no Parlamento, o contexto da opção: “Existe um enorme desvio entre o que os portugueses acham que devem ter como funções do Estado e os impostos que estão dispostos a pagar”. A asserção pode bem ser verdadeira, mas talvez valha a pena ter a perceção que, a existir, esse desvio não radica na despesa com a rede de mínimos sociais (um instrumento fundamental para que sejamos uma sociedade, se nada mais, decente). Estamos a falar de um conjunto de medidas que dá um contributo marginal para a despesa, mas que contribui muito significativamente para a redução das desigualdades e, acima de tudo, para aliviar das formas mais extremas de pobreza.
Quem não percebe que são anúncios como este que degradam de modo irreversível a capacidade política do Governo e a execução do memorando de entendimento, pura e simplesmente deixou de manter níveis de contacto, ainda que ténues, com a realidade.
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