quarta-feira, 3 de outubro de 2012

MEDIDAS REDISTRIBUTIVAS E IDEOLOGIA

É um dado adquirido que nunca houve tanto dinheiro em circulação no mundo e Portugal não é excepção. O problema de fundo tem a ver com a concentração cada vez mais acentuada da riqueza e com a falta de vontade política de levar a cabo medidas redistributivas que diminuam as desigualdades sociais existentes. Esta falta de vontade política é sinónimo de ideologia e a que domina agora vai no sentido do favorecimento dos ricos e poderosos. Não nos podemos, portanto, admirar que isso aconteça num governo da direita radical como o de Passos Coelho / Portas. A atribuição de subsídios estatais a fundações que não os deviam ter assim como a simples ideia de poupar dinheiro em medicamentos caros para “doentes com baixa expectativa de vida” são exemplos amplamente definidores de uma ideologia. É o tema que encontramos no texto seguinte.



Fundações ao fundo! (*)

Há dinheiro, para as obrigações do Estado, na assistência à saúde. Há dinheiro para pagar o subsídio de desemprego para os que caíram nessa desdita. Há dinheiro para reduzir o défice e para reduzir a dívida pública. Mas o poder político não o quer ir buscar, onde ele está. Esse é o grande problema.

Em Portugal e no mundo, nunca houve tanta prosperidade, como agora, mas as políticas redistributivas continuam a acentuar as desigualdades.

O Governo poderia sobretaxar as mais-valias bolsistas e outra obtidas exclusivamente de operações financeiras, tantas vezes, de origem duvidosa. Podia sobretaxar os rendimentos de capital, a partir de montantes obscenos. Podia perseguir as grandes fortunas, com o mesmo empenho com que persegue os salários da classe média. Mas não o faz. E porque justiça é devida, não o faz este Governo, como não fizeram os que o antecederam. Sobretudo, os executivos de Durão Barroso e José Sócrates (Pedro Santana Lopes não chegou a contar para este campeonato).

Mas há mais sítios onde ir buscar o dinheiro, sobretudo, o esbanjamento de dinheiros públicos. Esta semana [passada], por exemplo, soubemos que a emérita Fundação Gulbenkian recebeu, do Estado, entre 2008 e 2010, a bonita soma de 13483 milhões de euros. Num país como Portugal, isto é bárbaro.

(…)

A Gulbenkian terá sido campeã dos subsídios estatais. Mas os pornosubsídios prolongam-se por uma lista infindável, onde consta uma fundação para o Carnaval de Ovar, outra para a reconstituição da Batalha de Aljubarrota e muitas mais que aqui não cito, porque o decoro impede o comentário apropriado. Para carnavais chegam estas duas. Pensava eu, na minha ingenuidade, que as fundações eram instituições de direito privado, na maioria, com reconhecido interesse público e que, por essa razão, beneficiavam de favores fiscais, incluindo a devolução trimestral do IVA. Julgava também que detinham meios financeiros próprios de base e rendimentos isentos de impostos.

Sabia também que algumas acabam por meter a mão no saco que é de todos nós, quando reconhecidamente substituíam o Estado naquilo em que ele é tão falível. Pensava eu mas enganei-me.

O estatuto de fundação que passou a ser um guarda-chuva de largo espectro e até as universidades recorreram a ele, para agilizarem a sua gestão, contornando alguma burocracia. Foi um erro perdoável, porque, na realidade, as universidades não dispõem de meios financeiros próprios e são inteiramente dependentes das dotações estatais. Terão algumas receitas próprias irrelevantes que não chegam para pagar o salário da mulher da limpeza.

O Governo de Pedro Passos Coelho prometeu pôr ordem nesta casa de gente mal comportada e criou expectativas imensas. Mas ficou muito aquém do que era espectável, porque, mais uma vez, cedeu a pressões dos interesses underground que se escondem nos subterrâneos destas instituições. Como sempre, acabou por carregar onde era mais mole, deixando a pedra dura para quem vier atrás. Isto demonstra falta de coragem e covardia política de um Primeiro-Ministro com a demissão à vista e a vã glória do poder em contagem decrescente. Não quero imitar a meteorologia que garantia que a chover, só não sabia quando! Mas esta minha previsão, partilhada por outras dezenas de comentadores, tem confirmação marcada para as próximas semanas.

O mesmo deviam fazer os membros da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Elaboraram um parecer onde defendem que os doentes com baixa expectativa de vida não devem beneficiar de terapias caras. Um vómito de desumanidade, a que o bastonário da Ordem dos Médicos deu a resposta merecida. José Manuel Silva foi contundente, “assassinando” o parecer logo à nascença e liderando um enorme movimento de opinião contra o documento. Perante esta reacção sísmica, o ministro da Saúde, na noite de sexta-feira, também criou alguma distância prudente. Depois disso, os membros, mas sobretudo o presidente, só têm um caminho a seguir – a demissão. Isto, se ainda lhes restar alguma vergonha. Caso contrário, podem manter-se nos cargos, mas correndo o perigo de a opinião pública confundir a Comissão Nacional de Ética com uma vulgar associação de malfeitores, o que, convenhamos, é tão injusto, como o parecer que eles elaboraram.

(*) Sérgio F. Borges, “Diário de Coimbra”, 1/10/2012

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